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Foto do escritorThiago Rosa

Não salve o mundo

ou: rpg de mesa com histórias centradas em personagens


Uma deusa-demônio chegará ao mundo físico e destruirá tudo. Uma grande conspiração do mal elemental arrisca destruir os reinos como conhecemos. A ausência de um monarca faz os conflitos internos de um povo poderoso ameaçarem o mundo como um todo. As pesquisas de um mago insano arriscam mudar o entendimento geral do que significa morte.


O parágrafo acima descreve algumas das aventuras oficiais de Dungeons & Dragons quinta edição. Elas não são ruins (com a exceção de Hoard of the Dragon Queen). Elas só seguem um padrão bem repetitivo. Uma coisa horrível vai destruir o mundo e um grupo de aventureiros cai de pára-quedas na situação. O destino da existência nas mãos desses heróis improváveis. Pela quinta vez.


Storm King’s Thunder

Não tem nada errado em salvar o mundo


Antes de nos profundarmos sobre as vantagens de fazer campanhas que não envolvam o destino do mundo, vamos deixar uma coisa bem claro. Não existe absolutamente nada errado em fazer o contrário do sugerido aqui.


Você pode fazer narrativas épicas em que os heróis enfrentam uma série de perigos cada vez maiores até salvar o planeta/galáxia/multiverso de um rei/monstro/deus maligno. Você provavelmente vai se divertir pra caramba fazendo isso. Esse tipo de história não é popular sem motivo, afinal de contas.


Não queremos dizer que você não pode fazer isso. Queremos dizer que você não precisa fazer isso.


Vingadores salvam o mundo o tempo todo. Ou pelo menos tentam…

A jornada do herói


A história do herói improvável (ou de uma “galerinha da pesada”) que salva o mundo é tão recorrente na cultura humana que já foi dissecada mais do que qualquer outro tipo de história. Existem diferentes modelos de como essa história é construída, sendo o mais famoso definido por Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces.


Você vai, inclusive, encontrar artigos por aí que buscam usar a jornada como forma de estruturar uma campanha de RPG. Esse raciocínio não é necessariamente nocivo. Ter um esqueleto onde pendurar a carne de uma história costuma ser benéfico ao produto final. Não vamos nem entrar em questões sobre a diferença entre roteiros e aventuras de RPG. Entender a estrutura (em vez de empregá-la cegamente) pode aprimorar, sim, sua campanha. Só não exagere.


Um milhão é uma estatística


Apesar do fascínio que a cultura humana tem por histórias grandiosas de salvação do mundo, nós ainda lidamos com as coisas emocionalmente em uma escala pessoal.


Quando você vê uma notícia sobre uma grande tragédia, você fica chocado. Às vezes fica até sem palavras. A gente tem dificuldade de processar o que aquilo significa. É o absurdo da situação (e talvez um senso de pequenez diante de toda a escala) que nos atinge. Você não consegue racionalizar a emoção.


Quando você vê uma notícia sobre uma tragédia se abatendo sobre uma pessoa, você fica triste. Você sabe exatamente processar aquilo e a empatia permite que você se coloque no lugar de quem sofreu a tragédia. Você pensa que isso podia acontecer com você. Pensa como se sentiria na situação. Você consegue entender a emoção até bem demais.


O que causou mais impacto quando você viu Guerra Infinita? A morte de 50% das pessoas no universo… ou [spoiler] a morte de personagens com os quais você tinha afinidade?


Ufa! Ainda bem que o Capitão não caiu.

Laços emocionais


Nós nos importamos com aquilo que conhecemos. Dessa forma, para que nos importemos com alguma coisa, precisamos nos familiarizar com ela. Você pode ficar triste quando ouve de uma pessoa que se machucou, mas fica bem mais triste quando é o seu irmão que se machuca.


Estabelecer laços emocionais é crucial para que uma história funcione bem. Outras mídias precisam fazer vários truques para conseguir que isso funcione. No RPG, isso é muito mais fácil.


O jogador já tem um laço com o personagem que ele criou. Esse laço pode ser tênue se o jogador só enxergar o personagem como um “boneco”, mas ele está lá e pode ser estimulado.


Existem histórias relativamente curtas que causam grande impacto justamente pela intensidade da nossa conexão com os personagens. Quem diria que uma única temporada de 14 capítulos exibida fora de ordem poderia tornar um seriado tão querido, afinal de contas?


Firefly: basta continuar voando

Aproveitando a mídia


Claro, como mencionamos mais cedo, RPG não é a mesma coisa que histórias roteirizadas. Em Firefly, você pode decidir passar um capítulo inteiro falando da River. Em um jogo de RPG, você precisa dar espaço para todos os personagens, entreter todos os jogadores e se divertir no processo. O que um mestre pode fazer para se concentrar nos personagens dos jogadores, então?


Curiosamente, não precisa fazer muito. A mídia do RPG é especialmente adequada para esse tipo de situação. Desde que você consiga que os jogadores fiquem engajados com a ficção, só o que você precisa fazer é ficar calado e deixar os jogadores interagirem entre si. Pessoalmente, esse é o meu momento favorito em qualquer aventura que eu esteja narrando. Você já deu corda, agora é ver o que eles vão fazer com ela.


As dinâmicas que surgem das interações entre os personagens dos jogadores podem servir de indicador do tipo de desafios que eles querem encarar e do tipo de soluções que eles querem adotar contra esses desafios. Isso te permite conhecer melhor o seu grupo, facilitando que as mesas sejam mais divertidas para eles e para você.


A estrutura típica de “aventura baseada em lugares” típica de jogos old school é perfeita para isso. Depois de determinar alguns perigos lá presentes e talvez facções que possam interagir com os personagens, você deixa os jogadores livres para fazerem o que quiserem. Essa abordagem às vezes causa uma certa falta de urgência, o que costuma ser criticado. Acontece que, se você está concentrado nos personagens, isso pode ser uma coisa boa. Sem um motivo específico para correr contra o tempo, os jogadores podem se sentir mais confortáveis em seus papéis e interagir entre si mais livremente. Sem a preocupação um grande vilão para enfrentar, amizades e rivalidades podem florescer de forma natural. Isso aproxima as interações do que estamos acostumados na vida real, o que acaba nos deixando mais confortáveis.


Quanto mais tempo você puder passar em situações sem grandes objetivos e sem muita urgência, mais você dá aos jogadores tempo para desenvolver seus personagens e se acostumarem com eles. Isso garante que eles tenham laços emocionais mais fortes.


Filler x sidequest


Quem vê anime deve conhecer os temidos fillers. Eles acontecem em animes baseados em mangá ou light novel, geralmente incluindo conteúdo que não existia no original. Os fãs reclamam horrores deles, muitas vezes usando a palavra para falar de qualquer conteúdo arrastado ou que não gostem, independente de ser ou não presente na mídia original.




Essa abertura é de um arco que nem existe… e não deixa de ser irada por isso


Embora não seja esse o sentido original, a palavra acabou se tornando um sinônimo de “capítulo que não faz a trama principal progredir”. Para ver como isso não é uma coisa necessariamente ruim, podemos comparar com o termo sidequest dos videogames, que significa exatamente a mesma coisa mas é positivo. Qual é a diferença?


A grande diferença é que uma sidequest é uma escolha consciente. Diante de 20 capítulos de filler do seu desenho preferido, ou você vê aquilo ou fica 5 meses afastado da parada. Diante de uma sidequest, você pode decidir participar ou não e continuar fazendo o que estava antes.


Dessa forma, pensar em conteúdo que se concentre nos personagens como sidequests é muito mais interessante do que pensar como filler. Se você tiver uma estrutura de campanha que não tenha necessariamente uma trama principal, é melhor ainda. Se os aventureiros são parte de uma guilda e vão fazendo pequenos serviços, interagindo entre si enquanto trabalham, você já tem uma premissa de campanha. Você não precisa de um grande plot apocalíptico por cima disso tudo. Pode até te atrapalhar.


Não é como se isso já houvesse ocorrido antes, né?

Seja um fã dos personagens


Essa é uma dica comum dos jogos da Apocalypse Engine, que costumam funcionar nesse esquema de focar nos personagens. Se aplica a praticamente qualquer jogo. Seja um fã dos personagens dos jogadores.


Isso não quer dizer pegar leve com eles ou ficar elogiando os jogadores, quer dizer aproveitar o tempo que você vai ter para conhecê-los para apreciar os elementos que os tornam interessantes.


Aprenda a gostar do que os jogadores gostam nos próprios personagens. Se não tem NADA que você gosta no personagem do jogador, provavelmente é hora de bater um papo dele. Talvez o personagem dele não se adeque à proposta da mesa ou talvez ele mesmo ainda esteja meio perdido sobre o que fazer com o personagem. Isso é normal e um bom papo costuma resolver.


Aprenda a gostar dos personagens e não vai importar se eles estão salvando o mundo ou jogando cartas com a taverneira, vai ser irado do mesmo jeito.


Saiba mais


Para uma série de televisão concentrada nos personagens, confira Firefly.

Para dicas de caracterização de personagens, confira RPG Caracterização.

Para uma stream de RPG que combina um grande plot com foco nos personagens, confira Contos da Taverna.

Para saber como estragar completamente uma história concentrada em personagens, confira Fairy Tail.


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