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Foto do escritorGlauco Lessa

O que torna uma cena de RPG de Mesa interessante?



Jogos mais recentes, como Tormenta 20, têm abraçado cada vez mais a ideia de "cena" como uma medida de tempo mecânica, em vez de apenas uma unidade dramática na narrativa. Normalmente, a definição do que é uma cena nesses jogos é muito simples: uma cena é uma sucessão de acontecimentos interligados que acontecem em certo período de tempo e em certo lugar. Por isso, uma cena pode durar um combate, alguns segundos ou até vários dias.


Ter conhecimento do que constitui uma cena é importante para qualquer RPG. Ajuda o Mestre a conduzir o jogo e situa melhor os jogadores na narrativa. No entanto, é comum algumas cenas parecerem enroladas, longas ou simplesmente estranhas... Como evitar isso?


A dramaturgia pode nos ajudar.


As Engrenagens de uma Cena




Pense em uma cena que marcou muito você. A revelação de que Darth Vader era pai de Luke. A morte de Ned Stark. A recusa de Frodo em destruir o Um Anel na Montanha da Perdição.


Todas essas cenas são boas não só porque seguem uma estrutura interligada a outras cenas, mas também porque possuem uma estrutura por si só. Não existe uma receita de bolo, mas uma boa cena se constrói ajustando algumas engrenagens fundamentais, apertando-as e afrouxando-as para criar o efeito ideal. São elas:


1. O dono da cena quer _____. (Intenção)

2. Para isso, ele faz _____. (Ação)

3. Mas __________. (Oposição)

4. E então, ________. (Conclusão)


O Dono da Cena



Toda cena tem um dono. Talvez você nunca tenha parado pra pensar nisso, mas se olhar pra trás, vai notar que nas suas histórias favoritas, até as cenas menos importantes possuem um personagem em evidência. Até mesmo em suas mesas sempre vai haver.


Em um jogo de RPG, descobrir o dono da cena é muito fácil. Normalmente, será o próprio grupo de heróis. Dependendo da cena, o holofote vai estar mais sobre um jogador do que os outros, mas de forma geral, todos eles serão os donos da cena, porque é a partir deles que as cenas se desenvolvem.


Intenção


A cena começa. O dono da cena quer algo. Isso torna a cena importante, afinal as coisas não estão acontecendo por acaso, mesmo que pareçam.


Querer algo não é exclusividade do dono da cena. É claro que todos os personagens numa mesma cena querem várias coisas, porque têm seus próprios desejos. O que importa aqui é o que o dono da cena quer na cena em questão, e não seus objetivos de forma geral.


Por exemplo: um grupo de samurais visita o castelo de um senhor feudal porque uma guerra está para começar. A cena começa com os personagens reunidos diante do senhor feudal. Qual é a Intenção dos jogadores nessa cena? A princípio, será convencer o NPC a se juntar a eles na guerra.


Em campanhas de narrativa mais railroad, a Intenção normalmente surge da necessidade da trama junto das vontades dos jogadores. Em jogos hexcrawl ou de mundo aberto, ela costuma partir inteiramente dos jogadores, de acordo com o que os personagens desejam.


Ação




Para conseguir o que quer, o dono da cena faz algo a respeito.


É aqui que os jogadores brilham. É aqui que está a famosa agência do jogador. Cada jogador conhece seu personagem e sabe seus métodos e ideias. O que faz um personagem ser interessante não é apenas o que ele quer, mas o jeito único dele de buscar isso.


Em uma mesma cena, cada jogador pode buscar uma forma diferente de fazer algo, ou podem unir esforços em um mesmo método. Um combate é exemplo perfeito disso. Na intriga samurai anterior, um personagem mais eloquente pode apelar para vínculos diplomáticos, enquanto outro mais traiçoeiro parte para uma chantagem sutil.


O Mestre tem pouco ou nada a ver com a Ação de uma cena. Ela é dos jogadores. Eles vão tentar coisas de formas que apenas os personagens deles tentariam.


Oposição


Mas alguma coisa acontece.


O Mestre não tem controle sobre como os jogadores agem, mas pode prever algumas situações e pensar obstáculos de acordo com isso. Nesse momento, o desafio da cena fica evidente. Será que o dono da cena vai conseguir o que quer?


O combate é a forma mais literal e fácil de colocar Oposição em uma cena. Talvez por isso seja a mais valorizada em jogos de RPG e a preferida do D&D, o primeiro de todos os tempos. Os jogadores querem o tesouro, por isso entram na masmorra, mas há vários monstros lá dentro.


Apesar disso, há outras formas de criar Oposições. No exemplo com nossos samurais, a Oposição é que o senhor feudal não quer saber de guerra. Se ele já concordasse logo de cara em ajudar os heróis, seria muito fácil. O motivo de ele não querer entrar em guerra pode ser racional (vai causar prejuízo, morte) ou mais íntimo: ele perdeu um filho na última guerra que se envolveu. O Mestre deve pensar a razão da Oposição, se houver alguma.


Mesmo em situações que não envolvem interação social, é possível pensar em Oposições diferentes. Uma Oposição pode ser uma armadilha, uma parede desmoronando, os jogadores se perderem, alguém ser envenenado...


O Mestre precisa saber dosar a Oposição de uma cena. Às vezes é necessário que o senhor feudal seja convencido facilmente, mas quando a cena for importante, é interessante que a Oposição escale cada vez mais. Então se o inimigo for um conjurador, ele começa a usar magias cada vez mais poderosas conforme se sente mais ameaçado e atacado pelos heróis. O senhor feudal pode se sentir cada vez mais ultrajado com a insistência dos samurais.


O mais importante é respeitar o sucesso da Ação dos jogadores. Se eles tentaram algo de forma muito inventiva e funcionou muito bem (por causa de boas rolagens ou por jogo de cintura na interpretação), é provável que a Oposição não seja tão forte. E tudo bem. A graça do RPG é essa mesmo.


Conclusão


E então... o dono da cena consegue ou não?


Sob essa engrenagem, nem o Mestre nem os jogadores possuem qualquer controle. Ela será o resultado das engrenagens anteriores. Os jogadores agiram e o Mestre se opôs, criando uma cena envolvente. A Conclusão vai entregar o desfecho aguardado, e isso vai dar continuidade para a cena seguinte e para o resto da história. Talvez um dos jogadores morra, apesar do sucesso. Talvez o fracasso seja total.


A consequência de uma Conclusão nem sempre é sentida na mesma cena. Se o senhor feudal negar apoiar os samurais na guerra, a cena termina aí, mas a ausência desse apoio só fará diferença em cenas futuras, e é responsabilidade do Mestre ter isso em mente.


O Subtexto como Óleo das Engrenagens



Uma dica extra para deixar a cena mais rica é criar subtexto.


Repare nas pessoas de verdade em situações de tensão. Elas raramente dizem exatamente como se sentem ou o que querem. Por isso na ficção é tão estranho quando vemos personagens dizendo tudo tão abertamente. Soa falso.


Usar subtexto envolve dizer algo, mas deixar a entender outra coisa, ou até deixar a entender o completo oposto do que foi dito. As melhores cenas são aquelas que possuem um texto (o que está sendo dito) e um subtexto (aquilo que se quis dizer) diferentes.


Pense na negociação com o senhor feudal. A cena pode começar de forma mais literal, com um dos samurais dizendo abertamente: "Viemos negociar com o senhor uma possível aliança". O senhor feudal responderá educadamente que não possui interesse nessa empreitada. A negociação pode continuar de forma clara até o fim.


Agora, imagine que um jogador aproveita um momento mais descontraído do papo e pergunta: "Como vai sua filha? Soube que teve um filho recentemente". Pode ser uma provocação ou ameaça, o senhor feudal não sabe. Ele responde que "ela está ótima", mas não está, porque quase morreu no parto, e o jogador sabe disso (por investigações feitas em outras cenas).


Então, a partir de uma pergunta aparentemente inocente e de uma resposta mentirosa, de repente os jogadores estão mais próximos de conseguir a aliança que tanto querem. Se o jogador dissesse "eu sei que sua filha está mal de saúde, e podemos fazer mal a ela facilmente", com certeza a cena caminharia para um lado totalmente diferente.


Subtexto funciona muito bem em situações de intriga. Se jogadores e Mestre trabalharem juntos, diálogos podem se tornar memoráveis pro resto da campanha. Em outras situações, nenhum subtexto é necessário: às vezes você só quer ameaçar o inimigo de morte e logo em seguida levar sua espada contra a cabeça dele, e tudo bem também.


Outros Tipos de Cena


Como foi dito antes, nem toda cena precisa usar essas quatro engrenagens. Às vezes, uma cena só serve para apresentar um elemento ou para mostrar a transição de espaço ou de tempo. Nesses casos, normalmente não vai haver Oposição, e todo o resto será meio autoexplicativo.


O problema desses tipos de cena é quando elas se estendem demais. Cenas nas quais o Mestre apenas narra os jogadores viajando, por exemplo, são melhores se forem curtas. A mesma coisa vale quando ocorre uma cena em que o Mestre apenas descreve um lugar ou objeto. Não é bom se perder em descrições muito longas porque não há quase Ação nenhuma, muito menos Oposição.


Isso costuma acontecer também quando a cena é apenas um diálogo entre os jogadores. Como eles estão apenas interpretando, não há estrutura a ser seguida. O Mestre apenas deve esperar um desfecho da conversa, mas pode nunca vir. Uma boa dica é ter um NPC por perto, que possa ajudar o Mestre a direcionar o diálogo de forma a ser melhor aproveitado na trama. Se não houver nenhum outro personagem além dos jogadores, dá pra inserir algum elemento de urgência como Oposição, para que eles tenham que se decidir logo.


A única exceção é quando os jogadores gostam de cenas em que eles apenas conversam ao pé da fogueira e se conhecem melhor. O RPG possibilita esse tipo de aproximação íntima similar à da vida real sem que precise servir a um propósito completamente narrativo. Melhor deixar que os jogadores interajam e aproveitem esse momento para fazer a transição para a próxima cena.


E o Vilão?



Em alguns casos, o dono da cena pode ser um antagonista, e os jogadores na verdade estão reagindo a algo feito por ele.


Uma boa forma de apresentar um vilão é colocar os personagens em uma cena na qual ele é o dono, principalmente se o Mestre acostumar os jogadores a sempre serem donos da cena. A sensação da perda dos holofotes, mesmo que durante uma cena, vai ser sentida instintivamente pelos jogadores.


Em casos assim, o vilão terá uma Intenção e realizará uma Ação. Os jogadores, por vários motivos, vão poder apenas lidar com isso, e por isso farão a Oposição se necessário. A Conclusão vai sair daí.


Ainda usando um exemplo do mundo samurai, os jogadores poderiam ter sido acusados por um crime que não cometeram. O senhor feudal que irá julgá-los. Tudo indica que o próprio nobre é o conspirador. A cena é o julgamento. O dono dela é o senhor feudal. Ele quer incriminá-los. Por isso, apresentará argumentos e mentiras. O que os jogadores farão como Oposição?


Aviso Final


O RPG ainda é um jogo. Se essas engrenagens não devem ser seguidas à risca em um roteiro, menos ainda em uma narrativa criada em conjunto por várias pessoas. O lado bom do RPG é que o Mestre não é o único responsável por criar uma boa cena, isso depende também dos jogadores. Use as engrenagens como guia, pense numa Oposição adequada (se necessária) e deixe que os jogadores ajam de acordo com suas Intenções.


O que resultar dessas engrenagens vai ser a tão desejada narrativa emergente, sempre impulsionando a história da mesa para mais cenas memoráveis.




1 comentário

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Edu Leones
Edu Leones
Oct 29, 2019

Mto bom artigo!

Jogo RPG's de Whatsapp e, apesar de não serem tão bem elaborados quanto RPG's de Mesa são tão divertidos quanto. Estratégias e dicas são importantes para manter um RPG, então agradeço por isso.

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