Nos últimos tempos, estive acompanhando algumas discussões sobre o papel do background (tratado aqui como “história prévia da personagem”) no jogo. Na minha experiência pessoal, jogando em mesas presenciais, virtuais e até mesmo por texto, e também desde de comecei a participar mais ativamente da comunidade, já encontrei narradores e jogadores de todos os tipos: aqueles que só aceitam jogadores que tenham escrito pelo menos uma página de background, aqueles que jogam sem nenhuma história prévia definida, os que preferem backgrounds de uma frase ou um parágrafo, os que têm background mas não gostam de escrever, os que combinam a história entre si, etc. Você pode escrevê-lo em texto de forma simples ou elaborada, ou somente transmití-lo ao narrador através de uma conversa. Independente de como se desenvolva, é bastante frequente que nossas queridas personagens possuam pelo menos algumas poucas palavras que definam quem elas eram antes de iniciarem suas aventuras.
Preciso mesmo?
Um questionamento bastante comum, especialmente entre jogadores iniciantes é: eu PRECISO fazer um background (tratado aqui como “história prévia da personagem”) pra jogar? Embora muitos considerem este um item essencial para o jogo, a minha resposta simples é não, não precisa. Por mais que eu goste de criar histórias prévias bastante complexas para as minhas personagens, eu acredito que é perfeitamente possível começar a jogar sem ter um passado definido - isto é, sem que o jogador (d)escreva este passado.
Aliás, criar/descobrir esta camada da personagem no decorrer da aventura pode ser tão rico e divertido quanto escrever aquele background hiper-extenso com detalhes sobre as preferências de sabor de sorvete e porque ela fica chateada quando a chamam de “metade”. E não falo nem de personagens com amnésia (embora seja perfeitamente possível ter uma aventura com eles - e ainda ter um personagem interessante, mas esse é outro assunto). Estou falando de personagens que talvez até conheçam o próprio passado, mas ainda não o revelaram a você, jogador.
Isso não quer dizer que você está deixando a cargo único e exclusivo do narrador trazer uma motivação ou uma história para você - estamos apenas colocando isso como mais uma ferramenta da criação coletiva: não só o narrador, mas outros jogadores, outros acontecimentos durante o jogo podem se tornar sementes para que você descubra quem é este sujeito e quais são as engrenagens que fazem ele se mover.
Muitos debates sobre background tocam no ponto da extensão dessa parte da personagem. Eu acredito que isso é algo que depende de vários fatores: do tipo de campanha que será jogada, do perfil do grupo, das limitações do narrador e, claro, das suas próprias expectativas e limitações em relação a isso.
Penso que o ideal, especialmente em se tratando de personagens de nível baixo, em jogos como Pathfinder, por exemplo, é que não se faça nada muito extenso - ou pelo menos nada que tenha feitos excepcionais ou mirabolantes. Sobre formatos, costumo vê-los em dois extremos: ou criam-se textos - grandes ou pequenos, ou nós apenas falamos a coisa toda - meio por cima - para o narrador. Embora sejam os mais usuais, creio que seria enriquecedor se tratássemos a produção de backgrounds de outras formas: por que não apresentar imagens que representem seu personagem (objetivas ou subjetivas), ou um poema, uma música ou coisa que o valha? Nunca fiz nenhuma destas alternativas, mas acho que seria interessante experimentar.
Há pessoas que só de preencher a ficha já conseguem dar dimensões inimagináveis para o personagem. Aliás, lá nos primórdios do RPG esse tipo de coisa nem existia (ou existia muito pouco). Outro ponto a se pensar é: o que você considera um personagem bem construído? O que você prefere priorizar? Mecânica? Roleplay? Um pouco dos dois? (lembrando que essa dicotomia entre combo e interpretação é balela). Quer um personagem mais voltado pra ação? Pra conversa? Um solucionador de problemas? O que vai deixar o seu jogo mais fluido? Uma história, ou um background bem construído é aquele que, no fim das contas, está a seu serviço e a serviço do jogo - e não algo que seja um entrave. O background é do tamanho que você preferir, tudo depende de como você irá utilizá-lo. Inclusive, essas classificações de background entre melhor ou pior são improdutivas e não deviam nem entrar em discussão.
Para visualizar as diretrizes sob as quais meu personagem opera, eu gosto de escrever histórias longas, pois pra mim o segredo está nos detalhes. No fim das contas, acabo enviando uma versão resumida para o narrador. Afinal, para a minha tomada de decisões, pode ser que seja super importante saber qual o sabor de pizza favorito, pra que lado ela divide o cabelo ou quaisquer outros detalhes sobre a vida da personagem que não afetem diretamente a narração. Oras, se eu coloco essas coisas como ferramentas para me ajudar, porque raios vou encher o saco do narrador com informação excessiva? Ainda mais considerando que além da minha história, ele terá que lidar também com a dos outros jogadores?
“Mas Anaíse, você escreve histórias de 70 páginas sobre como seu personagem de nível 1 salvou 12 princesas e derrotou um dragão?”. Não, mas posso escrever páginas e mais páginas sobre os laços que ela desenvolveu ao longo de sua vida, como ela se relaciona (ou se relacionava) com o mundo, até o momento de início do jogo e isso tudo vira pra mim uma ferramenta de improviso.
O poder do improviso
A improvisação é um dos alicerces do RPG. Entretanto, para muitos de nós (e eu estou inclusa neste grupo) ela não vem tão facilmente. Há quem diga que para improvisar melhor e mais facilmente, são necessárias duas coisas: prática e repertório/referências. Essa premissa não está errada. Porém, de nada adianta ter um repertório gigantesco se você não sabe como acessá-lo. Neste sentido, criar uma história prévia à campanha, explicando quem é esta pessoa e como ela chegou até ali, sempre me ajudou bastante a visualizar previamente como um personagem poderia agir em determinadas situações. Serve para eu não travar e também criar interações mais interessantes, espontâneas e orgânicas - porque escrevendo eu consigo visualizar parâmetros claros do que eu espero para aquele personagem, o que eu gostaria de explorar com ela. O background sempre foi pra mim um guia, um piso seguro, em cima do qual eu posso improvisar, de forma que eu não me sinta tão pressionada na hora que alguém levanta a bola pra mim.
Pode-se argumentar que escrever e/ou detalhar demais um background é um empecilho para a criação coletiva, mas isso só vai acontecer se você permitir. A parte “oculta” - isto é, aquilo que os outros jogadores ou os detalhes que o mestre não sabe sobre o que você pensou para a sua personagem não precisa ser imutável. Você pode alterar e moldar as coisas conforme descobrir, na mesa mesmo, a identidade desse personagem. Acho que a maior questão é essa: saber usar aquilo que se produz como um ponto de partida, e não como produto finalizado.
Um jogo incompleto
Com a Lani, da mesa de Pathfinder 2 que joguei com o pessoal do canal “Perdidos no Play” e tantas outras foi assim: imaginei elas de um jeito, e no momento em que as coloquei em jogo, a coisa foi se transformando. Acredito que este seja mais um dos pontos em comum do nosso hobby com o fazer teatral: Quando ensaiamos um texto em casa, quando estudamos o personagem sozinhos, a coisa sai de um jeito. Porém, ao colocar tudo em cena, com a contracenação e intervenção dos colegas e diretor, a coisa toda se transforma. Inclusive, é bom a gente permitir que estas mudanças aconteçam! Do contrário, teremos personagens que não dialogam entre si. Aí sim, teremos propostas muito distintas que irão travar o jogo. O RPG é um jogo que não é completo, que possui lacunas para que os jogadores e narradores possam criar e improvisar em cima. Se você vai para a mesa com uma ideia de personagem 100% fechada e não se permite afetar pela narrativa dos outros, é melhor escrever um livro.
Permita que as ações internas e os pedaços do seu personagem que não foram externalizados na narrativa sejam maleáveis e pra finalizar, não queira ficar falando todo o seu background pra todo mundo o tempo todo. Aliás, personagem nenhum precisa saber a história de vida completa da sua personagem. A gente nunca sabe TUDO o que tem pra saber sobre a vida das pessoas - na verdade, só conhecemos delas aquilo que elas escolhem mostrar. Escolha o que o seu personagem quer mostrar.
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