top of page
Foto do escritorThiago Rosa

D&D se divide entre antes e depois de Dragonlance

Atualizado: 9 de jul. de 2019

A aventura que mudou para sempre o RPG mais popular do mundo


Você provavelmente já conhece Dragonlance. Um dos cenários mais populares e queridos de Dungeons & Dragons, Dragonlance foi lançado em 1984. Criado por Laura e Tracy Hickman junto com Margaret Weis, Dragonlance é famoso como uma das primeiras franquias multimídia.


Ao longo desse artigo, vamos conversar sobre a vida pré-Dragonlance do casal Hickman, sobre a DayStar West Media, sobre Dragonlance e sobre como as pessoas que menos gostaram do trabalho dos Hickman são as que mais dão importância para ele.



 

Dungeons, Dragons & Hickmans


O ano é 1979. João Figueiredo sanciona a Lei da Anistia. Margaret Thatcher se torna a primeira mulher eleita para o cargo de primeiro-ministro no Reino Unido. Michael Jackson lança seu álbum Off the Wall. O Internacional se torna campeão invicto do campeonato brasileiro de futebol. Jody Scheckter é campeão mundial de Fórmula 1 pela Ferrari. Em Michigan, um estudante desparece sem deixar vestígios e um detetive conclui que isso é culpa de D&D. Em Utah, Laura Hickman esquece de buscar seu marido Tracy no trabalho. O casal ainda não sabe, mas está prestes a mudar Dungeons & Dragons para sempre.


Laura Hickman, Felicia Day e Tracy Hickman

Tracy Hickman era um homem de muitas ocupações. Ele precisava ser. Os Hickman eram casados e já tinham dois filhos (hoje eles têm quatro) em 1979. Tracy estava na universidade. Os Hickman precisavam se virar nos trinta para fazer as contas fecharem.


Um dia, saindo de um dos seus trabalhos, Tracy se surpreendeu quando viu que sua esposa não havia ido buscá-lo. Cruzando a cidade de bicicleta, Tracy encontrou Laura tão concentrada em um jogo que havia perdido a hora. Chateado, Tracy perguntou sobre o tabuleiro do jogo. Laura disse que não havia um. Confuso, ele perguntou sobre as regras. Laura disse que elas eram flexíveis. Naquele dia, Tracy não ficou nem um pouco impressionado com Dungeons & Dragons.


Isso mudou um mês antes de seu aniversário. Laura tinha certeza que Tracy se apaixonaria por D&D. Dessa forma, ela comprou o Dungeons & Dragons Basic Set (de 1977) para ele como presente. De tão empolgada, ela entregou o presente um mês antes do aniversário. Pelas próximas três semanas, Laura quase não viu Tracy enquanto ele mergulhava de cabeça no mundo das masmorras e dos dragões.


Extremamente engajados com D&D, os Hickman queriam comprar o novíssimo AD&D Dungeon Master’s Guide. Porém, as finanças eram apertadas na residência Hickman. Para justificar o gasto, eles precisavam ganhar dinheiro com isso. A solução deles foi começar a escrever aventuras.


Um breve interlúdio sobre produção de suplementos de RPG


Hoje em dia, aventuras oficiais são um elemento fundamental da cultura dos RPGs. São poucos os jogos que não as utilizam de uma forma ou de outra. Mas não foi sempre assim.


Em 1974, Bill Owen e Bob Bledsaw foram alguns dos primeiros a se interessar por Dungeons & Dragons. A primeira dungeon de Owen não deu muito certo, mas assim que Bledsaw assumiu a cadeira de DM as aventuras do grupo os levaram da Terra-Média até Marte.


No final de 75, Bledsaw estava desempregado. Ele e Bill pensaram em iniciar uma empresa de jogos. Depois que as tentativas de Bill como game designer não deram certo, eles estabeleceram as bases do que viria a ser conhecido mais tarde como a Judges Guild.


Eles procuraram a TSR (a empresa que publicava D&D na época) e apresentaram seu plano de vender material suplementar. Aventuras, encartes, cenários. E os representantes da empresa riram na cara deles. Jogadores nunca iam comprar esse tipo de material. Mas, se os dois tinham tanta vontade de jogar dinheiro no lixo assim, eles podiam ter a licença.


A gente não sabe quem foram os funcionários da TSR que riram na cara de Bill Owen e Bob Bledsaw tantos anos no passado. A gente só sabe que eles estavam errados. Bill e Bob também sabiam disso e começaram a vender seus pacotes de conteúdo para DMs na Gencon de 1976, prevendo o que seria o modelo padrão de negócios de quase todos os jogos de RPG do futuro.


A segunda edição do primeiro suplemento da Judges Guild

DayStar West Media


De volta aos Hickman, eles tinham um plano. Conseguir uma licença oficial para D&D, na época, já não era tão fácil quanto foi para Bill e Bob. Eles teriam que publicar conteúdo “universal”, que pudesse ser usado para qualquer jogo. Ou, pelo menos, eles teriam que dizer que era isso o que eles estavam fazendo. O que eles estavam fazendo de verdade era escrever aventuras de D&D.


Para tanto, eles fundaram a DayStar West Media. Mais uma entre muitas pequenas editoras focadas em RPG da época. Apenas dois produtos foram lançados: Rahasia (em 1979) e Pharaoh (1980). Mas eram produtos que mudariam tudo.


Rahasia e Pharaoh

O manifesto da revolução Hickman


Tracy e Laura nunca tiveram nenhum interesse em revolucionar o modo como se jogava Dungeons & Dragons. Como tantos de seus contemporâneos, eles só tinham uma abordagem que preferiam sobre seu jogo preferido e decidiram compartilhá-la com outros fãs.


Isso não impediu que outras pessoas entendessem o peso do que eles propunham. A influência deles não se restringiu a D&D, afetando o RPG como um todo. Quando pensamos em uma aventura, hoje em dia, na esmagadora maioria das vezes pensamos em uma regida pelo que algumas pessoas do meio OSR chamam de “manifesto da revolução Hickman”.


Na verdade, essas quatro diretrizes são apenas explicações sobre o funcionamento incomum (na época) das aventuras. Eles foram retirados de Pharaoh, aventura publicada em 1980:


  • Um objetivo mais digno para os jogadores do que apenas pilhar e matar.

  • Uma história intrigante que esteja intrincadamente envolvida com o próprio jogo.

  • Dungeons que façam alguma espécie de sentido arquitetônico.

  • Um final razoável e atingível dentro de uma ou duas sessões de jogo.

O mais interessante dessa situação toda é que as próprias pessoas que cunharam o termo “revolução Hickman” acham que ela levou D&D para o lado errado. Essas pessoas são os grognards, os entusiastas da OSR. Os princípios da OSR se baseiam na “história emergente”, afinal de contas, de “jogar para ver o que acontece”. As estruturas mais bem definidas defendidas pelos Hickman são o oposto disso.


Hoje, o modelo advindo da revolução silenciosa do casal Hickman é onipresente no RPG, indo muito além do D&D. E, talvez até por isso, quem dá mais importância para o trabalho revolucionário de Laura e Tracy são as pessoas que menos apreciam esse trabalho.


Uma fraude no meio do caminho


Laura e Tracy estivam destinados a grandes feitos. Por outro lado, a DayStar West Media não estava. Tracy estava tentando desenvolver uma ideia ainda mais revolucionária, um videogame jogado em rede (muito antes dos MMORPGs como conhecemos). Infelizmente, ele se envolveu com um picareta que passou a perna nos Hickman e os deixou no vermelho.


Os Hickman deviam mais de 30.000 dólares. Para critérios de comparação, o preço médio de uma casa nova na época era de pouco menos de 60.000 dólares. Desesperados, eles tentaram qualquer alternativa que tinham para conseguir dinheiro, incluindo vender suas aventuras para a TSR.


Em 1982, a TSR já havia passado por muita coisa e não era mais tão ingênua quanto quando deu risada da ideia de vender suplementos. Eles não só queriam as aventuras, eles queriam que Tracy e Laura trabalhassem para eles.


Se hoje em dia trabalhar com jogos é visto com certa cautela, imagina no começo dos anos 80. A família dos Hickman insistia para que eles não partissem naquela jornada. Colocar duas crianças num carro velho e atravessar o país para escrever jogos? A coisa mais segura era voltar para a cidade dos pais e aceitar o novo emprego de chapeiro. Felizmente para o D&D, Laura e Tracy colocaram os filhos num carro velho e foram de Utah para Wisconsin determinados a reconstruir sua vida trabalhando com jogos. No caminho, eles tiveram uma ideia que ia salvar D&D e a TSR. Eles já tinham até o nome — Dragonlance.


A queda da TSR


Como mencionamos antes, em 1979 um rapaz desapareceu e um detetive colocou a culpa em D&D. Enfatizando a máxima de que não existe publicidade ruim, a exposição adicional que a cobertura do caso deu fez com que a TSR quintuplicasse seus lucros de um ano para o outro. Tentando se ajustar a esse crescimento, a empresa enviou Gary Gygax para Los Angeles para tentar transformar D&D em uma marca multimídia.


Na ausência de Gygax, os irmãos Blume assumiram a empresa. Suas decisões ousadas faziam com que a equipe da TSR aumentassem cada vez mais. Foi essa política que trouxe os Hickman para Wisconsin. Também foi essa política que fez a empresa ficar à beira de falência.


Em 1984, Gary Gygax ouviu em uma das suas farras dignas de rockstar que a TSR estava prestes a ser vendida por migalhas. Enfurecido, ele voltou para Wisconsin chutando a porta e tentando descobrir como salvar a empresa. Bizarramente, ele encontrou lá o que estava procurando em Los Angeles.


A semente da lança reside no olho do dragão


Tracy Hickman estava trabalhando em algo chamado Project Overlord. A ideia era que fosse uma aventura apresentando 12 dragões diferentes. Algo bem tradicional. Tracy não era muito tradicional. Ele não queria ser o cara do “dragão do mês”. Assim, Tracy começou a trabalhar no projeto, mas sempre tentando transformá-lo em algo maior e mais ambicioso.


Nesse meio tempo, as aventuras da Day Star West Media foram relançadas pela TSR. Pharaoh foi relançada como I3: Pharaoh. Depois, ela foi integrada como uma aventura de Philip Meyers, gerando I4: Oasis of the White Palm. Por fim, Tracy escreveu I5: Lost Tomb of Martek, fechando o que viria a ser conhecida como trilogia do deserto da desolação. Rahasia foi relançada de três formas diferentes, duas delas exclusivas para a RPGA (a Adventurers League da época).


Quando a DayStar fechou, os Hickman tinham duas aventuras em estágio preliminar. Uma delas, Vampyr, acabou se transformando em um dos módulos mais revisitados e republicados da história de D&D. Você a conhece pelo nome de Ravenloft. A segunda, Eye of the Dragon, não teve impacto direto; ainda estava num estágio muito inicial. As ideias dela, porém, serviram de combustível para o Project Overlord… incluindo a ideia de usar dragões como montarias.


A ideia de fazer com que Dragonlance fosse mais do que apenas aventuras colocou Tracy em contato com Margaret Weis. Editora e escritora da linha Endless Quest (livros-jogo), ela procurou bons escritores que pudessem dar vida ao mundo que ela e os Hickman estavam imaginando. Depois de muito procurar, ela disse como brincadeira que eles mesmos iam ter que escrever os livros. Percebendo que não era uma ideia tão ruim assim, foi o que eles fizeram.


Dragonlance salva Dungeons & Dragons


Quando Gary Gygax voltou a TSR, ele encontrou Dragonlance praticamente pronto. O projeto era ambicioso: um conjunto de doze aventuras divididas em quatro caixas. Lançamento de romances relacionados a ela. Camisetas temáticas. Gygax não tinha certeza sobre o sucesso da empreitada, mas também não podia ser dar ao luxo de desperdiçar tudo aquilo.


Dragonlance foi lançado e teve um sucesso avassalador. Os romances, principalmente. Assim que a trilogia inicial foi encerrada, uma nova trilogia Legends foi anunciada. Os romances venderam mais de 20 milhões de cópias. A TSR não precisava mais ser vendida por trocados.


Gygax fez mais do que aprovar o lançamento de Dragonlance para salvar sua empresa. Ele também havia finalmente conseguido o licenciamento do desenho animado de D&D e trazido a licença para lançar um RPG com os super-heróis da Marvel. O impacto de todas essas medidas salvou a empresa. Indubitavelmente, porém, o que salvou D&D foi Dragonlance.


Até hoje, ainda um dos RPGs de super-heróis mais queridos

Além das quatro estações


Dragonlance cristalizou de vez o modelo de aventuras criado pelos Hickman. Se ele já era uma tendência antes, depois de Dragonlance se tornou o padrão.


Depois da trilogia original de Dragonlance, não demorou para que os Hickman e Margaret Weis saíssem da TSR. Eles mantiveram um relacionamento amigável, mas Dragonlance nunca mais teve o mesmo destaque. Para preencher o vazio deixado por eles, a TSR investiu pesado em outro cenário. Hoje nós o chamamos de Forgotten Realms.


O cenário teve mais romances, teve adaptações em animação e quadrinhos, teve uma versão em RPG que não era D&D e outra que era. Há anos se comenta sobre um filme de Dragonlance desenvolvido por Joe Manganiello.


Tracy Hickman continua escrevendo jogos e ficção, indo de Firefly até Batman. Laura Hickman continua escrevendo junto do marido e também tem suas próprias obras sobre bolos. Margaret Weis manteve sua própria editora por anos, mas se aposentou recentemente, tratando apenas do licenciamento de suas criações.


Atualmente, Dragonlance não é um dos cenários oficiais da quinta edição de Dungeons & Dragons. Ele continua um dos mais populares nas pesquisas feitas com os fãs. Quem sabe, quando inevitavelmente voltar, ele não traga uma nova revolução ao RPG?


Margaret Weis, Joe Manganiello e Tracy Hickman

Saiba mais

  • Para relatos de grognards sobre a “revolução Hickman” (em inglês), confira aqui, aqui, aqui e aqui.

  • Para mais sobre a OSR em geral, confira Pontos de Experiência.

  • Para conhecer mais sobre a história da indústria de RPG (em inglês), confira Designers & Dragons, a principal fonte desse artigo.

  • Para entrevistas (em inglês) com Laura e Tracy Hickman, confira aqui e aqui.

  • Para uma entrevista (em inglês) com Margaret Weis, confira aqui.

  • Para mais detalhes (em inglês) sobre a Judges Guild, confira aqui.


0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page