O que vem a ser o conflito marcial x mágico? Quando a quarta edição de D&D saiu, eu estava muito empolgado. Eles estavam trabalhando lado a lado com o pessoal dos fóruns, gente que entendia muito bem a estrutura matemática do sistema. Eles tinham uma visão muito clara do tipo de cenário que eles queriam pintar. Caramba, eles lançaram um livro só explicando como seria essa nova edição! E era um livro irado! Como eu podia não ficar empolgado? Como alguém podia não ficar empolgado? (O jeito mais fácil de não ficar empolgado era ver os comerciais sofríveis que hostilizavam quem gostava das edições anteriores, mas isso é outro assunto.)
Era difícil conter a hype e as expectativas estavam lá em cima… e quando a quarta edição saiu ela era exatamente aquilo que eles tinham prometido. Equilibrada, matematicamente consciente, arrojada… só que muita gente ficou super chateada. O principal problema na recepção provavelmente foi o marketing, que enfatizava como tudo que veio antes da 4e era ruim. Quem passava pelo marketing, porém, ainda tinha que encarar os “poderes marciais”. Com toda certeza você já ouviu alguém reclamar que a quarta edição de D&D é horrorosa por ter “transformado todo mundo em mago”. Isso acontece por causa dos poderes, que codificam todas as habilidades de todas as classes a partir de um único modelo. Enquanto no AD&D só os magos escolhiam poderes de uma lista, essa 4e chega afirmando que um guerreiro só pode bater muito forte uma vez por dia.
Efeitos x descrição: sobre ninjas e samurais
Nem sempre a distinção marcial x mágico é relevante. As estruturas de um jogo costumam ser pensadas para que todos os tipos de personagem desejados já se encaixem, sendo que muitos jogos não se importam que conceitos diferentes sejam realizados da mesma forma. Por esse motivo, a grande maioria dos jogos genéricos é baseada em efeitos. 3D&T e Savage Worlds são bons exemplos. Não importa tanto assim como você faz, importa o que você faz. Se seu mecânico conserta carros com cuspe e graxa enquanto seu colega tem uma forma latente de empatia automobilística não faz diferença. Em 3D&T, os dois casos são tratados como a perícia Máquinas. Qualquer gosto especial vem do jogador, o que dá muita liberdade e é um dos principais motivos desses jogos terem tantos fãs.
Ainda assim, uma certa coerência é necessária para lidar com efeitos tão amplos. Esses sistemas genéricos até mesmo reconhecem isso. É a razão de ser dos descritores de Savage Worlds. Para adquirir um gosto especial na sua campanha, recomenda-se que o narrador mexa nesses descritores. Na adaptação de Hora da Aventura da Dragão Brasil, por exemplo, os tipos de dano de 3D&T são alterados para coincidir com as forças fundamentais da natureza em Ooo.
Existem também jogos baseados em forma que tentam misturar as duas abordagens, o que exige muito cuidado e muito trabalho. Um dos mais famosos é Legend, que trata cada tipo de poder como um “pacote” e colocada um rótulo neles, permitindo que sejam combinados de qualquer forma possível. Embora a recepção crítica de Legend tenha sido extremamente positiva, indicando um trabalho bem-feito, ele não é um jogo muito popular. Isso pode indicar que uma abordagem mista não atrai tantos jogadores ou pode ser só um caso curioso de dificuldade em encontrar seu público.
Quando parei de jogar 4e, achei que nunca mais me encontraria no limiar marcial x mágico. Porém, como diz a sabedoria popular, nunca diga nunca. Quando fui chamado para escrever para Empire’s Reign, um suplemento de Ninja Crusade, me encontrei lidando com o mesmo problema. Diferente dos sistemas genéricos, Ninja Crusade é um jogo extremamente voltado para a forma como as coisas são realizadas. Qualquer um pode dar um soco, mas determinados estilos de luta ganham vantagens para socar de determinada forma e o jutsu certo permite que você envolva seu punho em chamas antes de socar.
Todas essas coisas funcionam de forma diferente, enfatizando que cada um desses tipos de personagem é diferente (nesse sentido, o jogo lembra Shadowrun). Uma das minhas tarefas era descrever os poderes de duas das divisões militares do Império Izou. O meu primeiro rascunho voltou rápido, com uma nota dizendo que uma das divisões não usava ki. Eram samurais que se viravam só na habilidade com a espada. Você provavelmente sabe o que é ki, mas em Ninja Crusade ki é basicamente sinônimo de mágico em jogos de fantasia. É um elemento central do jogo, com atributos próprios dele e uma mecânica muito legal para gerar recursos a partir deles. Como eu poderia fazer alguma coisa legal com esses caras sem usar a estrutura de gerenciamento de recursos do jogo? Guardadas as devidas proporções, era o mesmo problema dos designers de D&D.
A resposta jaz no limite de usos
Eu tinha que inventar formas interessantes de lutar sem usar o recurso principal do jogo. Felizmente para mim, Ninja Crusade é um jogo com espaço de design muito amplo. O livro básico apresenta estilos de luta com armas, então eu decidi usar estilos adicionais para os meus espadachins. Isso resolvia um dos meus problemas (o tipo de poderes que eles teriam), mas gerava um outro problema. Os estilos de luta do livro básico não foram feitos para serem a fundação de um personagem, são elementos secundários. Dessa forma, seus efeitos são passivos e relativamente fracos.
Embora +1 no dano em algumas situações seja útil, não se compara com uma bola de fogo. Se eu quisesse criar efeitos similares aos ninjas do livro básico para os meus samurais, teria que encontrar outra forma de limitar seu uso. Esse é o problema do conflito marcial x mágico: o entendimento de que soluções marciais estão sempre disponíveis, enquanto que soluções mágicas não. Digamos que os samurais causem o mesmo dano da bola de fogo no mesmo número de alvos. Qual o motivo para gastar recursos se é possível ter o mesmo efeito sem fazê-lo? O samurai se torna melhor que o ninja! Minha solução foi limitar o uso de determinadas técnicas a uma única vez por combate, sob o risco de quebrar sua espada. Dessa forma, as próprias armas se tornam uma espécie de recurso.
Essa é uma boa solução dentro de Ninja Crusade devido ao sistema de armas, à disponibilidade das mesmas e da posição dos samurais como servos do Império Izou. Em outros jogos, como D&D ou Pathfinder, isso não é um problema tão grande. É uma simples questão de carregar várias espadas, já que nem o peso se torna um problema com soluções mágicas como mochilas de carga e luvas do armazenamento. Quando guerreiros trocam de arma como quem troca de camisa, nem a própria arma serve como um limitador de recursos.
Uma outra solução possível é utilizar a economia das ações. É como o próprio AD&D fazia no passado — magias são demoradas, facilmente interrompidas, às vezes demorando mais de um turno para serem conjuradas. Um mago precisa de preparação, tempo e ingredientes para sua magia, o guerreiro só precisa de uma espada. Embora seja uma solução extremamente funcional, ela não gera um equilíbrio real. O que acaba acontecendo é que no começo o conflito marcial x mágico tende para o lado marcial e depois tende para o lado mágico. Isso nem é um problema por si só — tantas pessoas gostam desse conceito de evolução linear para guerreiros e quadrática para magos que ele reparece em muitos jogos OSR.
A sombra da quarta edição
Encontrar o espaço de design para o conflito marcial x mágico em Ninja Crusade foi fácil, já que é um jogo feito propositadamente para ter um gostinho diferente em cada pedaço de crunch. Os designers do D&D tinham o mesmo problema, mas não tinham acesso ao mesmo tipo de solução. A diretriz de design era alinhar todos os termos, aproximar uma classe da outra, diminuir o estigma de “não sei jogar de mago”. Dentro desse paradigma, não houve muita escolha.
Alguns poderes marciais de guerreiro acabaram tendo efeitos (e até apresentação) muito similares aos das magias do mago. Até a diferenciação fora de combate sumia com a presença dos desafios de perícias. Embora as reclamações de “todas as classes são iguais” sobre a 4e serem muito exageradas, elas têm algum fundamento. E isso não é um problema ou defeito, era exatamente o que os designers queriam. Infelizmente, grande parte da comunidade não reagiu positivamente às mudanças.
O apagamento dessa linha divisória entre marcial e mágico aparentemente afastou muitos fãs de D&D da 4e. Guerreiros só faziam a mesma coisa sempre, sacudir suas armas e causar dano, sem esses nomes elaborados para golpes. Durante o playtest do Next, o anúncio de uma manobra chamada Iron Root Defense causou frisson nas comunidades online. Estariam os designers voltando a fazer as mesmas coisas da 4e, dando habilidades especiais para o guerreiro?
Quando os designers tranquilizaram a comunidade dizendo que era uma manobra de monge (sim, durante o playtest o monge tinha manobras), o público rapidamente se acalmou. E nessa reação o principal problema já é delimitado. A percepção do que é mágico ou marcial está muito arraigada à apresentação no passado, construindo expectativas que ultrapassam os efeitos e chegam até mesmo nos nomes. O problema não é o guerreiro ter uma postura defensiva, é ela se chamar Defesa Invencível de Ryld em vez de Postura Defensiva. Nomes grandiosos são exclusivos de magias e dos magos.
O raciocínio do marcial se aplica principalmente às classes guerreiro e ladino, que frequentemente têm equivalentes em sistemas de classe. Consideradas não-mágicas e mundanas, essas classes não têm a vantagem da suspensão de descrença que a magia traz. Por serem mais próximos do que podemos fazer, acreditamos que entendemos melhor os limites das habilidades de um guerreiro ou ladino. Dessa forma, nosso entendimento individual limita muito mais os arquétipos marciais que os demais.
É magia, não precisa explicar
Em 2007, a histórica fase de J. Michael Straczynski no Homem-Aranha de forma bem amarga. Forçado a desfazer o casamento de Peter e Mary Jane pelo editorial, sendo obrigado a escrever as edições por motivos contratuais e sem nem mesmo conseguir que seu nome fosse removido, JMS queria pelo menos que a história ocorresse do jeito que ele planejara. A ideia é que um pacto com o diabo salvaria a tia May da morte em troca do casamento, que nunca teria ocorrido.
Isso causaria grandes mudanças na cronologia do personagem, o que seria solucionado pelos próprios roteiristas. Temendo a quantidade esmagadora de trabalho que reescrever vinte anos de quadrinhos causaria, o editor Joe Quesada decidiu manter tudo do jeito que estava mas sem o casamento. Quando os fãs confusos perguntaram como isso poderia acontecer, a posição de Quesada foi bem clara (e infame): “É magia. Não precisamos explicar.”
Embora a única pessoa no mundo que tenha ficado satisfeita com essa explicação tenha sido Joe Quesada, ela se aplica perfeitamente para o funcionamento de magia em muitos universos ficcionais. Como a magia funciona muitas vezes é um mistério, o que acaba dando mais cor ao mundo e mais liberdade para os escritores (e em um RPG, para os jogadores/mestres). Em outros casos, as regras de funcionamento da magia são inconsistentes ou contraditórios. Há casos, ainda, em que há todo um sistema estruturado para o funcionamento da magia, internamente consistente. Esse é um fenômeno comum em RPGs tradicionais, embora muitas vezes seja criticado justamente por tornar a magia previsível.
Curiosamente, foi também em 2007 que o conceituado autor de fantasia Brandon Sanderson começou uma série de artigos, conhecida como As Leis de Sanderson (em português aqui). Elas tratam do uso da magia como um sistema internamente consistente. A ideia de Sanderson é que um sistema de magia interessante, inovador e internamente consistentemente funciona como um pilar da construção do mundo e, a partir daí, da narrativa. Toda a extensa carreira de Sanderson usa os sistema de magia como apoio, utilizando um sistema novo e interessante para cada um de seus universos ficcionais. Alguns deles até geraram RPGs próprios.
Os limites da magia
O sucesso comercial de Sanderson e a qualidade das narrativas que ele apresenta baseando-se nos sistemas de magia apontam para uma conclusão simples. Estamos condicionados, como público, a acreditar melhor naquilo que faz sentido. Dessa forma, não conseguimos aceitar que um guerreiro salte de um lado para o outro da ponte sem uma boa explicação. Curiosamente, esse tipo de feito é comum em lendas e mitos, com pouca ou nenhuma explicação. Enquanto que personagens mágicos podem existir em uma escala além da nossa imaginação desde que suas regras façam sentido, personagens marciais precisam viver confinados não somente ao sistema de regras que encarnam como também às nossas regras da realidade.
Essa diferença de abordagem se aplica até mesmo a super-heróis. Para que eles tenham suas habilidades incríveis, cada um precisa de uma explicação convincente. Até mesmo o quão convincente é a explicação vai depender da época. Nos anos 1960, era o bastante dizer que Peter Parker foi picado por uma aranha radioativa. No cinema, se tornou uma aranha geneticamente modificada. Nos quadrinhos, curiosamente durante a mesma fase que nos deu o “é magia não preciso explicar” de Quesada, foi postulado como um poder totêmico. Não é estranho que o Homem-Aranha seja rápido ou forte, mas se o autor quer que ele dispare raios em alguma história vai precisar de uma boa explicação. Isso inclusive já aconteceu, na forma do poder cósmico do Capitão Universo.
Basicamente, o limite do guerreiro é o mesmo limite que o seu. O limite do mago é a sua imaginação.
Isso é um problema?
A principal questão sobre a divisão marcial x mágico acaba sendo essa. Tratarmos personagens mágicos e não-mágicos de forma diferente é um problema ou não? Será que a abordagem dos jogos genéricos baseados em efeitos é a mais coerente? Será que mais jogos deveriam abraçar as Leis de Sanderson? É possível usar os efeitos de poderes fantásticos como pilares da sua narrativa?
A única resposta definitiva é que a divisão marcial x mágico não precisa ser um problema. Conforme game designers experimentam mais e apresentam novas formas de lidar tanto com atividades mundanas quanto efeitos metafísicos, encontramos jogos que conseguem equilibrar bem as expectativas sem tornar um lado decididamente melhor que outro. Isso gera um equilíbrio interno, sim, mas nem sempre alcança o equilíbrio desejado.
Mutantes & Malfeitores é um jogo baseado em efeitos que permite o uso de poderes novos com muito pouco esforço, desde que sejam baseados em um tema comum. Digamos que você está jogando com o Homem-Aranha e precisa atacar à distância. Você não tem o poder Raio. Se quiser, pode usar um esforço extra para ter temporariamente o poder alternativo Raio para seus lançadores na teia. Talvez funcione na forma de pequenas bolas de teia disparadas contra o alvo. O que é curioso nesse sistema é a enorme versatilidade que ser um mago traz.
“Poderes de aranha” funciona como um delimitador do que um personagem pode fazer. O mesmo não acontece com magia. Precisa criar uma cópia sua? Magia. Precisa se teleportar? Magia. Precisa de uma arma para enfrentar um demônio antigo? Magia. Em vez do jogador ter que pensar em como vencer o vilão com seus poderes, ele passa a pensar em que poderes ele precisa para vencer o vilão. É uma grande inversão de paradigmas a partir de um rótulo simples. A partir disso, um personagem mágico acaba solucionando mais problemas do que um marcial. O que nos leva ao problema de verdade.
Efetividade: quando a magia controla a exposição aos holofotes
A divisão marcial x mágico só é mesmo um problema se ela impede que personagens marciais tenham o mesmo protagonismo que personagens mágicos. Quando a magia é o único jeito de solucionar problemas, ou um jeito tão eficiente que o resto quase não faz diferença, todo mundo devia ser capaz de usar magia.
Esse tipo de problema acontecia com frequência na terceira edição de D&D. Seguindo as diretrizes de encontros do Livro do Mestre, um grupo com 50% de conjuradores acaba tendo magias o bastante para lidar com todos os encontros do dia. Enquanto não precisa recorrer a opções mundanas, o mágico se torna objetivamente superior ao marcial. Não por quaisquer questão de números, mas por conseguir resolver todos os problemas. É preciso escalar um montanha? O guerreiro pode fazer vários testes de Escalar. O mago pode conjurar vôo. Combate contra trolls? O guerreiro pode empurrar o monstro para uma fogueira acesa. O conjurador pode conjurar bola de fogo.
Nas situações supracitadas, a magia domina o espaço de protagonismo e assume os holofotes. Claro, existem várias soluções para manter a magia do jeito que está e solucionar esse problema. Pathfinder costuma fazê-lo com um número maior de encontros e com uma duração menor de magias, fazendo com os magos gerenciem melhor seus efeitos. A quinta edição de D&D adota a solução da 4e, mas com uma nova roupagem, dando uma série de pequenos benefícios para personagens marciais que eles podem recuperar a cada descanso curto ou longo. Com esses benefícios, eles podem realizar feitos parecidos com os dos personagens mágicos, às vezes até melhores.
No final das contas, desde que prestemos bastante atenção e planejemos bem nossas aventuras, os problemas da divisão não aparecem. Infelizmente, esse é um exercício muito trabalhoso. Caso isso esteja realmente sendo um problema, a divisão marcial x mágico está prejudicando seu jogo. Então, pode ser uma boa ideia trocar para um sistema que a abraça (como Ninja Crusade) ou a elimina (como Legend).
Muito obrigado Igor! Já arrumamos lá e espero que te ajude!
Opa, o link das leis de sanderson em portugues ta quebrado, tem como resolver?