Uma das mecânicas mais tradicionais do RPG é a iniciativa. O modelo mais comum já foi repetido milhares de vezes em milhares de jogos — faça um teste, determine uma ordem, os personagens agem, repita. Também é a uma das reclamações mais tradicionais de narradores. A logística do modelo simples de iniciativa não é complicada, é só fazer uma lista; todos nós sabemos fazer listas desde muito antes de jogar RPG. Já vi várias técnicas sendo sugeridas para facilitar iniciativa e até vi um produto da Paizo que me interessei em comprar — um quadro magnético em que você rearranja tags metálicas para demonstrar a ordem da iniciativa. Perceba que eu falei no passado — deixei de me interessar em trinta segundos quando percebi que estaria pagando 20 e tantos dólares + envio por um produto que faz a mesma coisa que uma folha de papel de rascunho, só que com menos flexibilidade.
OK. Calma. Isso tá confuso. São coisas diferentes sendo faladas ao mesmo tempo. Pouca coerência, apesar do tema ser o mesmo. Espera, será que é pra isso que serve iniciativa?
Para que serve iniciativa
Jogamos RPG com várias pessoas diferentes, cada uma querendo realizar suas ações. Se os personagens pudessem agir o tempo todo sem nenhuma restrição, seria tudo resolvido no grito; os jogadores mais extrovertidos (ou com cordas vocais mais poderosas) agiriam com mais frequência e não sobraria nada para os demais jogadores fazerem. Seria tipo uma reunião de condomínio, com a diferença que as pessoas se importam.
Regras de iniciativa servem para garantir que cada jogador tenha sua chance de atuar. É um protagonismo encaixotado — todo mundo entra na fila para poder fazer coisas iradas. Como a grande maioria das mecânicas recorrentes, iniciativa cria espaço de design — você passa a poder criar elementos mecânicos que podem expandir o funcionamento da iniciativa. Esses elementos podem servir para reforçar certas características do sistema, estabelecer certos equilíbrios (“armas de duas mãos causam mais dano, mas armas leves atacam primeiro”) e até para emular gêneros ou estabelecer cenários (“o saque mais rápido do oeste”).
Vendo dessa forma, pode parecer que iniciativa só traz vantagens, mas não é bem assim. Mais e mais sistemas têm usado mecânicas alternativas de iniciativa, porque a ideia em si é boa — mas a execução tradicional é no mínimo problemática.
Um problema simples
Eu vejo com uma certa frequência jogadores que acham combate uma parte chata de RPG em jogos mais tradicionais, como Pathfinder e D&D. Eu demorei muito tempo para entender isso — cenas de ação permeiam a esmagadora maioria das regras nesses sistemas e quase tudo que está anotado na sua ficha tem como objetivo tornar o dia de alguém bem pior. Pensei durante muito tempo que isso acontecia por causa da quantidade de combate nos jogos, muitas vezes um encontro atrás do outro sem grande chance para desacelerar o ritmo. Afinal de contas, mesmo as coisas mais emocionantes podem ficar monótonas se você as repete demais. Isso acontece em tudo na vida — por exemplo, você pode ficar super impressionado com a paisagem da primeira vez que viajar de avião, mas depois de repetir algumas vezes você só vai se recostar e dormir. Eu estava errado. Achar combate chato não tem nada a ver com repetição ou monotonia. Tem a ver com a iniciativa.
Lembre seus jogos mais feijão com arroz de D&D. Os personagens estão em um momento de tensão, cercados por hobgoblins, o paladino do grupo nocauteado em um ataque surpresa. O mestre pede para rolarem iniciativa. Todo mundo rola os dados, soma os modificadores, avisa o mestre, ele vai dizendo de quem é a vez. Como seu mestre faz isso? Se ele diz “João, é a sua vez”, já encontramos o problema. É por isso que você odeia combate. A culpa não é toda do seu mestre (afinal, ninguém nunca disse que ele estava fazendo algo errado), mas a culpa é um pouco do seu mestre. Ele criou uma ruptura entre a mecânica do jogo e a narração. E eu não estou dizendo que ele tem de chamar o João de Tauriel o Místico ou qualquer coisa assim. O problema é outro.
OK, antes de prosseguirmos, vamos estabelecer mais um pouco de contexto para que você acompanhe meu raciocínio. Você quer saltar sobre um poço. O mestre pede um teste de perícia. Você rola o dado e ele diz que você conseguiu. Qual é a diferença entre isso e a iniciativa? Pensa comigo — saltar por cima do poço era o que você queria fazer; a narração, o andamento da história dentro do mundo ficcional. O teste de perícia é uma forma de determinar seu sucesso; é o fator aleatório, a mecânica, a resolução de conflito. Mas seu mestre não disse “seu teste de perícia foi bem-sucedido”. Ele descreveu seu salto ou no mínimo disse que você conseguiu (o que pode até ser uma ferramenta de narração mais poderosa, já que é mais breve e deixa os detalhes por sua conta). O resultado direto da sua ação é o retorno que você recebe do mestre. A sua ação fez um salto (com o perdão do trocadilho) da narração para a mecânica e de volta para a narração.
Agora, como foi mesmo com a iniciativa? O mestre disse que era a “sua vez”. Sim, dentro do jogo é mesmo a sua vez, mas dentro do universo ficcional não existe “sua vez” — é um combate tenso com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, sem protagonismo encaixotado, sem fila pra fazer coisas (e sem garantias que serão iradas). Por isso o combate parece chato — você fica esperando a “sua vez” e se desliga do que está acontecendo no resto do tempo. Você ainda não abriu sua caixa de protagonismo. Não chegou a sua vez na fila de fazer coisas iradas. Por que diabos você iria se importar?
A solução simples
Pare de dizer “sua vez”. OK, se você estiver com preguiça e seus jogadores estiverem suficientemente pilhados, você pode dizer sua vez, mas saiba que é como cometer um pecado. Eu falo “sua vez” de vez em quando, mas eu sou extremamente preguiçoso e eu sei que o que eu estou fazendo é a pior forma de fazer a bola (ou seria o dado?) rolar. Mas sério, pare de dizer “sua vez”.
Uma coisa que a gente comentou agorinha mesmo é que os jogadores às vezes não prestam atenção ao que acontece quando eles não estão agindo. Isso é uma coisa que eles podem melhorar, sim, mas você como mestre pode ajudar seus jogadores a melhorarem. O melhor jeito de fazer isso? Usando a iniciativa. Não dizendo “sua vez”, mas estabelecendo a cena. Vamos voltar para o exemplo do grupo emboscado pelos hobgoblins — em vez de “João, é a sua vez” você lembra João do que está acontecendo. “João, os hobgoblins atacam de surpresa, derrubam o paladino com um golpe de sorte e o sangue dele mancha o robe de Tauriel enquanto ele cai. O que você faz?” Percebeu a diferença? Você manteve toda a comunicação no âmbito da narração. O que Tauriel faz ou deixa de fazer não é uma questão mecânica (as opções que ele tem e as chances de ser bem-sucedido são, mas isso é um processo internalizado). Se o paladino foi derrubado na ação imediatamente antes de Tauriel, você pode pular direto da descrição para a deixa dele: “O líder dos hobgoblins dispara uma flecha. O resultado foi… 20! Amanda, seu paladino sofreu 32 pontos de dano e caiu para trás com a flecha cravada no peito. O sangue respinga em Tauriel enquanto o hobgoblin prepara outra flecha e aponta para ele. João, o que Tauriel vai fazer?”
No final das contas, a palavra-chave é “deixa”. A sua vez chega quando você tá na fila do banco. Quando você tá esperando pra fazer coisas iradas, você precisa entrar nesse espírito antes de agir.
A solução complicada
Se você joga sistemas mais ousados, sabe que iniciativa pode funcionar bem diferente de rolar um dado e somar um número. Usar um sistema alternativo de iniciativa pode ajudar a trazer inovação e dinamismo se isso é um problema para a sua mesa. Na verdade, todo o motivo de existirem sistemas alternativos de iniciativa é evitar esse tipo de problema com o modelo clássico.
Por exemplo, o sistema de iniciativa do Marvel Heroic Roleplaying tem duas etapas. Na primeira rodada, começam os personagens super-rápidos (ou com poderes de super-sentidos, previsão do futuro, essas coisas) ou quem atacou primeiro, no caso de uma emboscada. A partir daí, cada personagem dá uma deixa para outro personagem após concluir sua ação. Você escolhe quem vai agir depois de você. Isso faz o jogo fluir mais rápido, mas o que é realmente interessante é que integra as deixas para ação no sistema. Mais legal ainda, você passa a dividir essa responsabilidade com os jogadores, já que no final de cada ação eles devem deixar a deixa para os demais.
Em Exalted 3e, você faz um teste de Joint Battle (Raciocínio + Prontidão), conta os sucessos e soma três. Esse é o seu valor de iniciativa inicial. Os personagens agem na ordem de maior para o menor, como nos sistemas de iniciativa tradicionais. O pulo do gato é que iniciativa não é um número estático ou uma abstração desvinculada, mas sim um elemento mecânico com reflexo direto no universo ficcional.
É o ritmo da batalha; alguém com iniciativa mais alta está com vantagem, está no controle, está pressionando seu oponente. Por isso, os ataques são divididos em dois tipos — withering(debilitantes) e decisive (decisivos). Ataques debilitantes causam dano na iniciativa do alvo e recebem bônus para acertar; eles também aumentam a sua própria iniciativa. Ataques decisivos causam dano na saúde do alvo normalmente, mas são mais difíceis de acertar; caso você erre um ataque decisivo, sua iniciativa cai; algumas armaduras e poderes concedem Hardness (dureza), que se for maior que o seu valor de iniciativa anulam qualquer dano. Quando sua iniciativa cai a zero, você sofre um initiative crash e não pode mais fazer ataques decisivos nem usar determinados poderes (sua dureza também cai para zero). Quando você leva a iniciativa de alguém a zero, acontece um initiative break e você ganha bônus adicionais na sua própria iniciativa. Se você começa o turno com iniciativa zero mas passa o valor do seu oponente através das suas ações, acontece um initiative shift e você ganha um novo turno. Basicamente, combate em Exalted é sobre reduzir ao máximo a iniciativa do oponente antes de atacar com um golpe decisivo; o que combina muito mais com a fantasia wuxia do jogo que qualquer outro sistema.
É bem parecido com Final Fantasy Dissidia, uma das principais influências da 3e.
Em Last Stand (um jogo fantástico que infelizmente não está mais no mercado), os jogadores agem antes dos personagens do narrador. O personagem com menos tokens (a moeda de troca do jogo; pense nos pontos de destino do Fate) age primeiro, depois o segundo com menos tokens e por aí vai. É simples e funcional, mas tem um twist muito interessante no suborno de combate. No começo de cada rodada, o narrador põe um token na frente de cada jogador. Se o jogador não pegar o token, no turno seguinte o narrador põe mais um token. Se algum jogador decidir pegar o token, os personagens do narrador agem antes dos personagens dos jogadores nessa rodada.
Em Feng Shui 2, você rola um dado e soma sua Velocidade. O resultado mais alto determina qual será o primeiro shot da sequência (afinal, é um jogo que emula filmes de ação). Cada ação consome uma determinada quantidade de shots (normalmente três). Portanto, se você agiu no shot 15 e deu um soco em alguém, vai agir de novo no shot 12. Algumas ações que você pode tomar fora do seu turno (por exemplo, defesas) também consomem shots, então você pode acabar escolhendo levar um tiro para poder ter a chance de dar um soco no cara com o lança-mísseis antes dele poder agir. O jogo usa um contador de shots para acompanhar a iniciativa e sugere que os jogadores levantem as mãos para avisar quando é a sua vez. O sistema é ótimo, mas essa ideia de levantar as mãos é péssima. Deixe o contador no centro da mesa, onde todos podem ver; cada um anota sua iniciativa pessoal em papel de rascunho e anuncia suas ações quando o marcador chegar no shot certo. Assim você tem um elemento em que todo mundo precisa estar ligado. Algumas pessoas vão perder o turno às vezes (e isso acontece com o sistema de levantar as mãos também), mas isso não é o fim do mundo.
Esses sistemas podem ser mais fáceis ou mais difíceis de integrar no seu jogo favorito, dependendo de quanto espaço de design foi usado para iniciativa. Perceba que você pode ter um sistema de iniciativa bacana usando pouco espaço de design (como em Last Stand ou MHRPG) ou tornar esse o elemento central do seu sistema de combate (como em Exalted ou Feng Shui). No final das contas a escolha é toda sua — ter trabalho para usar um sistema de iniciativa mais funcional, passar a dar deixas narrativas para seus jogadores ou continuar dizendo “sua vez” enquanto todo mundo cai no sono. Tá, OK, talvez as pessoas não caiam no sono — e nesse caso você realmente não precisa se preocupar com nada. Você deve estar fazendo alguma coisa muito certa pra seus jogadores manterem a atenção focada o tempo todo.
Muito bacana o texto, nunca havia pensando nisso e em como a iniciativa realmente atrapalha, me fez pensar em narrar mais a cenas de combate sem deixar influenciar de quem é a vez de quem ou usar gatilhos na iniciativa para que o ambiente mude e transforme a atenção dos jogadores para com o combate. Uma coisa é certa, vou melhorar isso. Parabéns pelo texto.