Nos últimos dias acompanhei uma discussão bastante acalorada no grupo de RPG de mesa Pensando Dungeons & Dragons, que se iniciou com a postagem de uma thread sobre sexualização de personagens femininas nos quadrinhos. Acredito que o intuito era fazer um paralelo com o que acontece com personagens femininas em cenários de RPG. O post original foi trancado, mas desde então vários outros foram surgindo dentro da mesma temática, e um dos assuntos que mais entrou em pauta foi a presença ou não de de seios e/ou decotes em armaduras femininas.
Percebo que o debate, não só nesse grupo mas de modo geral, tem sido muito focado em questões que envolvem um suposto realismo ou fidelidade histórica. Nesse sentido, o argumento de que é apenas um mundo de fantasia — logo, não é preciso ter um compromisso com a realidade, torna-se “““perfeitamente válido””” para colocar mulheres utilizando biquínis extremamente sexualizados em situações nas quais seus companheiros homens estão usando armadura até nos dentes.
A grande questão, que acho que ainda não conseguimos abordar com sucesso a respeito do design de personagens femininas não é se suas armaduras são realistas ou não. É se o design é coerente com a personagem, seu histórico e o cenário ao qual ela pertence.
Pra falar sobre isso, vou usar como exemplo a minha personagem da campanha de D&D 4e (num cenário criado pela mesa) que estou jogando atualmente e trazer algumas das muitas referências que foram utilizadas em sua criação.
Conheçam Nai’lah!
Ilustração feita pela Lila Madera, que conseguiu traduzir no seu design tudo o que eu queria para a personagem!
A classe dela é semi-homebrew e chama-se dançarina(o) etérea(o) — semi porque é basicamente um bardo com uns poderes exclusivos/modificados. Foi criada em conjunto com o mestre e surgiu de um desejo antigo de criar um bardo de dança.
Analisando o figurino dela pelo viés de muitas das críticas de design de personagem que tenho visto, ela é péssima: olha essa armadura decotada! E essa parte vazada na cintura? Completamente ineficiente! Isso pra citar apenas dois detalhes.
Entretanto, por se tratar de um cenário de fantasia inspirado em Final Fantasy e com uma pegada meio anime/mangá, quando eu a criei pensei no que seria interessante, divertido e funcional para esse contexto.
Primeiramente, a maior inspiração para a classe foram os bailarinos e bailarinas de dança do ventre — uma de minhas muitas paixões. As danças Árabes possuem, pra mim, um carisma, uma presença e uma força, muito próprios delas, unidos à parte do show e do entretenimento (que tem tudo a ver com o bardo né?). Nesse sentido queria que a roupa dela tivesse elementos que remetessem a isso.
Outro ponto a se considerar é que Nai’lah pertence a uma etnia élfica, semi-nômade (os ase’nath), que se agrupa em clãs e ocupa um vasto território que engloba desde uma região de floresta densa a colinas e estepes (não vou entrar em muitos detalhes geográficos).
Supõe-se que para o estilo de vida que leva, ela precisaria de roupas leves, que lhe permitam uma facilidade na hora de montar e se movimentar.
Ao mesmo tempo, considerando que utiliza da dança para canalizar suas magias e que a dança envolve movimentos com a região do abdômen e do quadril, não faria sentido cobrir e restringir a visibilidade e movimentação desta parte com uma armadura de couro 100% fechada. Também seria necessário algo que realçasse seus movimentos (franjas e tecidos esvoaçantes). Além disso, por não ter grande proteção com armaduras pesadas, a roupa esvoaçante ajuda-a a não ser atingida em combate.
O que quero mostrar com tudo isso? Nai’lah é uma personagem atraente e que tem sensualidade. Entretanto, não precisei objetificá-la ou sexualizá-la pra isso. Isto é, a roupa dela não foi feita com o objetivo de excitar ou agradar o sexo oposto. Quando pensamos a personagem, a justificativa não foi “quero isso porque é sexy”. A gente pensou, antes de mais nada em contexto, sem necessariamente entrar em questões de realismo.
É por uma questão de contexto e coerência que tanta gente (eu inclusa) abomina personagens com mega decotes, bikini plates, fio dental, roupas que parecem ser meras pinturas em volta dos seios e do bum bum…porque as vezes simplesmente não casa! Dentro do universo do erotismo e da pornografia (considerando um público masculino) pode até fazer sentido. Porém este não é o caso em jogos de RPG, que (majoritariamente) não estão focados em realização de fantasias e desejos sexuais. O mesmo vale para videogames não-eróticos, de modo geral.
Claro que se Nai’lah fosse de outro tipo de cenário, algo mais próximo de um Game of Thrones, com uma pegada mais densa e mais séria, o design seria outro. Entretanto, apesar de não ser funcional do ponto de vista do realismo, acredito que em termos de design de personagem e estética, chegamos a um resultado bem coerente — e acredito que seja esse o olhar que temos que ter, pra evitar sexualização e objetificação na hora de pensar nossas personagens femininas.
Confiram algumas imagens que eu e o leandropug escolhemos para montar uma pasta no Pinterest do RPGNoticias para ilustrar melhor as ideias do texto e recomendar inspirações para vocês.
Bom texto
Esse post exemplifica muito do que eu penso. Tem que haver um equilíbrio entre Estética e Realismo, e esse equilíbrio vem justamente no contexto da obra.