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Foto do escritorThiago Rosa

Quando um jogo de RPG morre?

O assassino sabia que o prédio estava para explodir. Ele também tinha os meios para escapar da explosão em plena segurança. Se o fizesse, porém, não teria chance de confrontar a irmã que estava decidida a matá-lo. Sabendo que ia morrer, avançou na direção dela.

Esse interlúdio rolou em uma mesa que eu jogo online com amigos. A mesa está rolando faz cerca de dois anos, acho. Nela, eu fiz novos amigos e reencontrei um parça dos tempos da adolescência. Até aí, nada de incomum. Acontece que estamos jogando Street Fighter: the Storytelling Game. Um jogo que já foi descontinuado faz 23 anos. Street Fighter StG, como produto, está morto. Acontece que como jogo ele não sofreu o mesmo destino.

Jogos mortos não têm zines dedicados a eles!

O que compõe um jogo de RPG?

Perceba que evitei a palavra “sistema”. É muito comum tratarmos um sistema de RPG como sinônimo de um jogo de RPG, mas o sistema é apenas parte do conjunto.

Um jogo de RPG é composto por vários elementos. Temos o sistema, as características mecânicas que nos permitem jogar. Temos o cenário, o plano de fundo para as histórias geradas a partir do sistema e/ou temos o gênero das histórias que o sistema pretende gerar. Temos as ilustrações, que traduzem em imagens as palavras de descrição do sistema e do cenário, ampliando a compreensão dos mesmos e conectando-os entre si. Por fim (e mais importante) temos a comunidade. Um jogo que não vê mesa é um zumbi.


Representação da sua estante cheia de jogos que você não joga


A força dos fãs

A comunidade que se forma em torno de um jogo é um elemento essencial para sua sobrevivência e continuidade. Existem várias formas de participar da comunidade de um jogo, todas com impacto na longevidade do mesmo e até na saúde financeira da empresa.

O ato de jogar é obviamente o mais importante para que um jogo se mantenha, mas não é a única forma de integrar a comunidade de um jogo. Discutir o jogo em redes sociais, produzir seu próprio conteúdo (na forma de material de jogo, ilustrações, etc), interagir com outros fãs, comprar novos produtos… tudo isso ajuda a constituir uma comunidade e ajuda um jogo a se manter vivo.

Olha esse vídeo de um menino mais novo que você se engajando com seu jogo favorito.



A responsabilidade dos autores

O comportamento dos autores e editores responsáveis pelo jogo também se reflete no comportamento da comunidade. Se eles não demonstram interesse na própria criação, a comunidade perde o interesse e a empolgação.

Um exemplo recente muito triste é o da Evil Hat, que publica Fate. Apesar de terem contado com grandes resultados em financiamentos coletivos e uma comunidade ativa na produção de conteúdo, a empresa se encontra em apuros financeiros. A presença dos autores em redes sociais, porém, quase nunca trata do jogo em si. Fred Hicks é ativo em redes sociais, falando de política, falando de negócios, falando da indústria do RPG. Agora sabe do que ele nunca fala? Sobre jogar Fate.

Compare com os brasileiros da Redbox e da Jambô, que parecem respirar Old Dragon e Tormenta. O resultado é um engajamento enorme da comunidade. Os fãs organizam suas próprias streams, assistem as streams oficiais, discutem o andamento delas, produzem seu próprio conteúdo, conversam sobre o conteúdo oficial… e principalmente jogam MUITO. Essas duas comunidades são extremamente ativas, empurradas principalmente pela atitude dos autores em relação às comunidades. Mesmo que ambas as editoras parem de publicar Old Dragon e Tormenta amanhã pode ter certeza que os jogos continuarão vivos por décadas.

Da mesma forma que o comportamento de gente como Dan Ramos e Guilherme dei Svaldi reflita positivamente na comunidade, não é nenhuma surpresa que o comportamento de Fred Hicks se reflita negativamente em sua comunidade. A comunidade mundial de Fate parece falar mais sobre Fate e produzir mais material para Fate do que de fato jogar Fate.

Lembre-se: uma comunidade forte que não joga pode, sim, garantir que seu jogo seja longevo. O que ela não pode fazer é garantir que seja lucrativo.

Tormenta RPG

A importância do suporte

Não é nenhum grande segredo que aventuras de RPG não costumam vender muito bem. Ainda assim, elas são uma constante no mercado e parece que não irão embora tão cedo. Qual seria o motivo?

Uma aventura nova mantém o jogo no ciclo de notícias. Mesmo um fã que não esteja jogando pode ver a aventura e se interessar nela. Mesmo que não jogue, ele pode comprar, ler e comentar dela. Mesmo que não compre ele pode comentar que está interessado em jogar. Isso gera exposição para o jogo e lembra para as pessoas que o jogo existe.

Depois de anos tentando ganhar dinheiro com suplementos, D&D parece ter aceitado que qualquer livro depois dos básicos é apenas uma forma de promover os livros básicos. Como produto, o RPG depende muito da venda do livro básico.

Aventuras e outros elementos de suporte cumprem dois papéis. Eles interagem com a comunidade, estabelecendo melhor o que o jogo é e definindo sua identidade. Ao alimentar a comunidade eles atraem novos jogadores e esses novos jogadores compram novos livros básicos.

Uma mortífera aventura para Old Dragon.

O que mata um jogo?

A Evil Hat provavelmente vai superar seus problemas financeiros e se manter firme na sua posição como guardiã do Fate. Porém, mesmo que isso não aconteça, Fate não vai morrer.

Uma coisa que a Evil Hat fez muito bem é o grau de acessibilidade que seus jogos têm. Para falantes de língua inglesa, quase todo o conteúdo digital de Fate está disponível pelo modelo ‘pague o quanto quiser’. Isso garante que a barreira de entrada seja baixa e que qualquer pessoa interessada possa avaliar o conteúdo e se tornar parte da comunidade.

A única coisa que pode realmente matar um jogo é o descaso da comunidade. Nem a qualidade do jogo por si só é um problema. O sistema Daemon é uma relíquia de todas as piores práticas de design dos anos 90 e ainda tem gente jogando, mesmo sem suporte nenhum da editora.

Independente dos autores fazerem tudo certo ou tudo errado, não são eles que ditam se um jogo vive ou morre. O melhor que eles podem fazer é se esforçar e torcer para dar certo. Quem decide a vida ou morte dos jogos somos nós, os jogadores, a comunidade. Se você quer que um jogo viva, fale sobre ele, comente dele com os amigos, participe de grupos em redes sociais a respeito. E, acima de tudo, jogue. Afinal, um jogo que não vê mesa é um zumbi.

Saiba mais

Se quiser saber mais sobre o estado atual da Evil Hat, confira aqui (em inglês).

Para mais informações sobre comunidades e seu impacto na mídia, confira esse artigo (em inglês).

Para acompanhar o excelente suporte que Jambô dá à sua comunidade, confira a Dragão Brasil.

Para participar das comunidades brasileiros mais movimentadas, confira os grupos de facebook Old Dragon e Masmorra de Valkaria.

3 comentários

3 comentários

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Douglas Scafutto
Douglas Scafutto
12 de ago. de 2020

Gostaria de saber mais sobre essas práticas ruins que a Editora Daemon cometeu com seu sistema (acho que vale um artigo/post). Daemon foi o primeiro sistema de RPG que me interessei e o que mais joguei até hoje XD

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Daniel Tschiedel
Daniel Tschiedel
05 de jun. de 2020

É uma pena o lance do Fate, porque ele é um jogo ainda bem moderno e excelente. Me pergunto se a decisão de deixarem o Fate aberto e não cobrarem pelo uso da licença foi um dos motivos desse fracasso comercial, visto que as demais que cobram por isso estão bem.

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Davi Henrique
Davi Henrique
05 de jun. de 2020

Ótima matéria Thiago. Vocês podiam escrever uma matéria sobre "as piores práticas de design dos anos 90", já podiam fazer dos anos 2000" e de dos tempos atuais (pode ter parecido que ficou sarcástico mas não, é que fiquei curioso mesmo).

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