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Violência Sexual - Sobre os limites que devemos ter nos RPG de Mesa

Em primeiro lugar, um aviso. Esse artigo tem gatilhos relacionados a violência sexual.


Esse texto não é meu.


A autora pediu espaço para desabafar sobre um assunto sério e que já tentei abordar em um vídeo onde falo sobre violência no RPG (que você poderá achar no final do artigo.


Infelizmente é um assunto que volta e meia temos que abordar, mas por mais difícil e doloroso que seja, sempre é bom deixar claro o porquê dessa questão ser tão sensível.


Espero que as novas informações e dicas ajudem todos a terem mais empatia em seus jogos e evitar ainda mais sofrimento para tantas pessoas que tem q guardar essa dor dentro delas e só querem alguns momentos para relaxar com amigos e explorar novos e fantásticos mundos.

 


Passei um dia fora dos grupos de Facebook e me aparece uma treta desse tamanho! A treta, pra quem não sabe, se iniciou com um post que falava sobre a não-necessidade de inserir cenas de estupro no jogo. Eu não li todos os comentários. Passei os olhos por alguns muito bons e outros tantos bastante problemáticos e até mesmo dolorosos.


Esse texto talvez saia um pouco bagunçado, porque apesar de hoje eu conseguir falar sobre isso, ainda é difícil organizar os pensamentos. Sou jogadora de RPG e fui estuprada várias vezes pelo meu ex-namorado, enquanto ainda estava com ele, em um relacionamento abusivo. Não vou entrar em maiores detalhes, mas acho importante deixar isso às claras.

Quero explicar, pela perspectiva de alguém que foi vítima, por quê narrar estupros na mesa é algo desnecessário e até mesmo cruel.


Preferia não ter que me esconder - seria bom dar um nome e uma cara a esse texto. Entretanto, embora eu não tenha problemas em falar sobre isso com meu marido, amigos e terceiros aleatórios, a minha família não sabe - e no que depender de mim vai continuar assim. Não quero que eles saibam, e com meu nome aqui esse texto poderia eventualmente chegar até eles. Não quero ter que lidar com isso.


Sobre os comentários-problema que vi na postagem, de forma resumida e simplificada: uns sugeriam que há muitas coisas piores do que estupro (como homicídio, escravidão, tortura, etc) que são tratadas com naturalidade. Outros que diziam que era uma boa forma de acrescentar mais drama à narrativa e (pasmem) como um recurso para fazer os jogadores terem mais raiva do vilão e/ou motivar personagens e que há séries que utilizam isso de forma excelente.


Em relação ao primeiro grupo: é absolutamente complicado você mensurar que tipo de atrocidade é “menos ruim”. Sofrimento é relativo. O que faz uma pessoa sofrer, o que deixa ela mal, está muito relacionado à realidade próxima dela e ao que ela viveu. O fato de ter crianças sendo assassinadas no oriente médio não anula o meu direito de sentir dor, e não querer que isso seja abordado nos jogos que eu participo. Nossos sofrimentos não se anulam. Provavelmente se eu tivesse vivenciado uma situação de guerra, eu teria problemas com isso também…


“Ah, mas homicídio - por exemplo - é pior que estupro”(teve alguém que falou algo assim) - Será que é mesmo? Que régua estamos usando pra medir isso? Não sei se é pior ou não, mas cortar cabeças de lordes, ou ter toda a minha vila pilhada e saqueada por orcs, quase morrer em um combate épico ou ser controlada por uma criatura mística, são coisas completamente abstratas pra mim. Estupro não. Estupro tem, inclusive, um rosto, um cheiro, um toque e uma voz específicos. Quando consegui sair do relacionamento abusivo, houve dias em que eu me senti tão burra, tão suja, tão incapaz que achei que seria melhor morrer. Importante dizer que o que me salvou, além de uma rede de apoio de amigos, foi principalmente ir à psiquiatra e psicóloga. Não fosse por isso eu talvez não estivesse aqui, escrevendo esse texto.


Preciso mencionar também que todos os comentários que vi diminuir a gravidade do estupro em relação a outros crimes hediondos partiram de homens. Eu consigo entender essa comparação. É uma realidade com a qual vocês não precisam se preocupar. Apesar de haver, sim, casos em que homens são estuprados (especialmente garotinhos), as mulheres têm muito mais chances. Para citar apenas um dado vago, em 2018 foram registrados mais de 180 estupros por dia no Brasil e 82% das vítimas são do sexo feminino.


Isso não quer dizer que outros crimes não tenham dados alarmantes - veja bem: uma coisa não anula outra. Contudo, estes dados servem para demonstrar que em relação a estupro nós somos especialmente vulneráveis. Assim como também estamos mais sujeitas a relacionamentos abusivos, assédio e importunação sexual, por exemplo. Estupro, para nós, é uma realidade muito, MUITO próxima. Diferente de uma flechada no joelho, ou pessoas sendo escravizadas, uma situação de abuso pode muito bem ter acontecido - ou, infelizmente, tem boas chances de acontecer com uma mina da sua mesa. Com uma amiga sua. Com a sua mãe, sobrinha ou avó.


E pra quem já passou por isso, ou vive com medo disso, ter que ver ou reviver, especialmente em um jogo tão imersivo como é o RPG de mesa é um ato de crueldade.

“Ah, mas se a pessoa se incomoda com o assunto é só falar que não quer que coloque na mesa!” - Muitas pessoas, e por muito tempo eu estive nesse grupo, não querem falar que incomoda. Seja por receio de estragar a diversão do grupo, ou por medo de ser “descoberta” como vítima. Isso pra citar só dois exemplos. Por isso sou tão a favor de, especialmente ao jogar com desconhecidos, fazer uma sessão 0 e/ou passar um formulário de consentimento.

Com a sessão 0 todo mundo pode falar o que aceita e o que não aceita na aventura e com o formulário é possível fazer isso de forma mais impessoal (até porque não precisa nem colocar nome) e ninguém vai se sentir tão exposto. Assim todo mundo pode ter um jogo mais seguro.


“Ah, mas eu jogo no sistema x, com o cenário tal, o mundo é assim, a realidade é terrível! O jogo é desse jeito!” - ouvi uma justificativa parecida com essa quando um narrador insistiu em estuprar minha personagem em uma mesa de WoD mesmo depois de eu dizer que aquilo me deixava desconfortável (os outros dois jogadores ainda endossaram). Sim, a realidade em WoD e em tantos outros sistemas é terrível, mas com tantas opções de coisas hediondas pra colocar, porque precisava ser justo a que eu praticamente implorei pra não acontecer? No final a criatura ainda teve a cara de pau de sugerir que se eu jogasse direito, faria minha personagem usar aquilo pra ficar mais forte e buscar vingança. Briguei com todos, saí da mesa, fui taxada de louca. O mundo pode ser cruel, mas você - que está narrando/jogando - não precisa ser.


Isso nos leva à segunda categoria de comentários: os que colocavam estupro como uma forma de melhorar a dramaticidade da coisa, pra mostrar o quanto o mundo é terrível, para dar mais motivação/fortalecer os personagens, ou em busca de um suposto realismo. Existem mil e uma maneiras (usando cores,cheiros, texturas, vocabulário) de mostrar que a realidade do mundo é dura e cruel - estupro é apenas um recurso raso, pobre e preguiçoso, usado levianamente por diversas mídias, não como forma de acrescentar algo à narrativa, mas como valor de choque puro e simples. Aliás, um dos exemplos citados como uma forma “interessante” de abordar estupro na narrativa e construção do mundo/realidade cruel foi Game of Thrones - e sou obrigada a discordar.



Veja bem, vocês que gostam de abordar temas gráficos e violentos: o problema nem sempre está em mostrar a violência em si, mas em como ela é tratada. Em Game of Thrones - e na maioria das vezes que estupros aparecem em livros, filmes, videogames e também nos nossos jogos de RPG de mesa, o estupro é abordado ou de forma absolutamente gratuita, sem servir de nada à narrativa, apenas pra dizer “tá vendo como o mundo é ruim? Tem até estupro!”. Ou, quando é inserido na narrativa, é como foi em GoT: (spoiler) Sansa foi estuprada por Ramsay depois de ser forçada a casar com ele. Houve algum tipo de tratamento disso da perspectiva dela? Ela, como vítima, teve alguma voz? Não. Ao invés disso, o foco ficou em como foi horrível para o Theon/Reek ver a moça naquela situação. O estupro dela foi romantizado. Usado como forma de desenvolver um outro personagem. Foi só por isso. Precisava estar ali? Não.


No final da série, Sansa ainda fala que se não fosse pelos abusos que ela sofreu, não teria se tornado a mulher que se tornou. Aos roteiristas e aos narradores de plantão, que pensam em usar isso no RPG como forma de motivar/construir personagens, gostaria de dizer uma coisa: Estupro não constrói personagem, só destrói.


Ser estuprada não me tornou mais forte. Passar por isso, aliás me quebrou de várias formas indescritíveis e de um jeito que parece que não tem mais conserto. Entre tantas coisas, tive um quadro depressivo, quis morrer, piorei minha ansiedade e hoje, que sou casada, meu marido não pode me abraçar enquanto eu durmo, porque acordo em pânico. Faz oito anos que fui estuprada e embora essa sensação tenha se amenizado, o que sinto é que algo que não sei o que é foi brutalmente arrancado de mim - e que nunca mais vai voltar. Por muito tempo isso chegou a tirar um pedaço da minha identidade - deixei de confiar nas pessoas, não conseguia dormir com ninguém ao meu lado, eu, que sempre fui muito extrovertida, comecei a ter ansiedade social. Fui mutilada de forma invisível e embora as feridas estejam cicatrizadas o que eu perdi sei que não vou recuperar.


Ao contrário da romantizada Sansa, não sou forte porque passei por abuso. Sou forte e estou aqui APESAR dele. Por causa dele jamais. Por causa dele eu só perdi coisas...quer mesmo colocar isso em um personagem quando a pessoa que tá do teu lado pode estar efetivamente destruída?


Há quem diga que Diana Gabaldon em Outlander fez um bom trabalho ao mostrar as consequências do estupro que Jamie sofreu. De fato, a ênfase não foi dada nos atos heroicos que o tiraram daquela situação e sim em como aquilo o destruiu e na luta para se aceitar e superar o ocorrido. Pessoalmente foi uma representação que não me incomodou assistir, apesar de ter sido bem mais gráfica que GoT. Achei fidedigna, e não idealizada. Mas isso como espectadora. Estar em uma mesa onde isso aconteceu com meu personagem ou mesmo com um NPC provavelmente me daria ânsia de vômito. Aliás essa é a minha percepção da cena. Outra vítima de estupro pode enxergar de maneira completamente diferente...

Até hoje, a representação mais sensível que já vi foi da artista Rachel Smythe em Lore Olympus, webcomic indicada ao Eisner. A personagem principal passa por um estupro, mas não é mostrado diretamente. Ao invés disso temos acesso ao que se passa na cabeça dela. "Eu quero isso?" "Isso é minha culpa?" "Por que isso está acontecendo". Ela usa cores e texturas para deixar a violência subentendida de forma delicada e ainda assim deixa um trigger warning imenso no inicio do capitulo. O estupro, na série, não é usado como motivação para a personagem e tampouco como característica que irá definir sua totalidade. Tratam-se as consequências e superações sem transformar isso no foco da trama ou do desenvolvimento de personagem. Ainda assim, é um quadrinho. Não é um RPG.


Estou tentando concluir esse texto, mas não sei como. Não consigo criar a conclusão grandiosa ou uma justificativa simples. Apenas reforço que estupro é uma realidade palpável demais para muitos de nós pra ser colocada levianamente em um jogo tão imersivo.


 


2 comentários

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Alexandre Ezequias
Alexandre Ezequias
Nov 20, 2019

Eu acredito que estupro é realmente algo realmente sensível de se colocar em uma aventura e, por vias gerais, deve ser evitado. Mas, durante seu texto, o problema que vi não é a cultura do estupro (que é um conceito no qual não acredito), mas sim a falta de noção do mestre. Um mestre DEVE conhecer a sua mesa, e se não conhece por x motivo, NÃO DEVE colocar em pauta assuntos tão sensíveis ou "gatilháveis". Em uma das minhas primeiras experiências como mestre, cometi um erro desses. Narrei a cena de um atropelamento, mas eu narrei mais detalhadamente do que o necessário e um dos jogadores estava ficando meio desconfortável, logo, parei e comecei a medir os point of interest…

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franciolliaraujo
franciolliaraujo
Nov 11, 2019

Nunca em minhas mesas retratei cenas de abuso sexual e normalmente evito temas mais fortes, pois as considero completamente desnecessárias à narração.


Já mestrei para vítimas de abuso sexual, e a última coisa que elas precisam é de gatilhos que as façam reviver cenas que deixaram marcas tão profundas.


Uma pena que as repercussões de artigos como esse nem sempre seja possitivo. Certa vez reuni mais de 180 comentários, inclusive de mulheres que diziam que não concordavam com essa discussão.

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