Acho relevante começar esta resenha dizendo que sempre fui fã de Tormenta. Isso pode fazer com que vejam minha opinião sobre A Deusa no Labirinto, romance de Karen Soarele, como tendenciosa, e provavelmente é. Mas, como verdadeiro fã, nunca poupei Arton de críticas, e a forma como a escravidão tapistana era representada era um dos meus maiores incômodos.
Não é mais.
A Deusa no Labirinto é sobre uma aventureira e clériga de Tanna-Toh chamada Gwen, que resolve se entregar como escrava de propósito em busca de contato com revolucionários abolicionistas que agem nas sombras de Tapista. A intenção dela é libertar todos os escravos do Império de Tauron.
Logo em um dos primeiros trechos do livro, pude notar a abordagem que a Karen escolheu para tratar de um tema tão complicado. No meio de um combate eletrizante na cidade, alguns escravos enjaulados são libertos, suas correntes quebradas:
"Os escravos libertos começaram a se espalhar. Os mais esperançosos buscaram rotas de fuga pelos corredores labirínticos da cidade. Com estes, o capitão dos minotauros não se preocupou. Seriam recapturados e punidos assim que o incidente no Fórum fosse contido. Os mais realistas, por outro lado, sabiam que não havia escapatória. Alguns se resignavam e apenas aguardavam a recaptura, como a elfa ajoelhada junto ao filho, o que tornaria o trabalho do capitão mais fácil. Outros, no entanto, justamente por conhecerem sua sina é que se tornavam perigosos. No desespero descobriam a ousadia."
Nessa cena, talvez muitos leitores esperassem que todos os escravos fossem se levantar contra seus senhores. É algo que estamos acostumados a ver com frequência na ficção, mas Karen escolheu um caminho menos simples, o que faz todo sentido, porque esse não é um assunto simples. A escravidão não é apenas uma amarra física; ela quebra também seu espírito. Muitos fogem com a certeza de serem recapturados e punidos, outros preferem morrer lutando, enquanto alguns — pasme — sequer tentam qualquer coisa.
No decorrer do livro, os personagens lidam com a escravidão de variadas maneiras. Karen, no entanto, nunca relativiza a crueldade desse ato. Os vilões são humanizados, até mesmo Tauron, o Deus da Força, líder da religião que escraviza humanos e elfos. Existe uma linha tênue entre humanizar um vilão e justificar suas atitudes, mas Karen não comete esse erro. É tudo de uma extrema responsabilidade com os personagens, com o assunto e com os fãs.
Sobre o enredo em si, alguns desfechos são esperados, mas muitos deles são realmente imprevisíveis. A sucessão de acontecimentos combina o dia a dia simples da sociedade táurica e sua hierarquia burocrática, longos trechos de ação cinematográfica e descrições angustiantes e escatológicas quando a Tormenta está em jogo.
A alternância entre esses tons garante uma leitura envolvente, que valoriza o peso de momentos mais tensos em contraste aos momentos mais tranquilos, sem nunca causar cansaço. Há alguns poucos erros aqui e ali, na pontuação de alguns diálogos e em certas referências geográficas do mundo de Arton, mas nada que atrapalhe a leitura.
Algumas vezes vi a Karen dizendo que o livro fala sobre relacionamento abusivo, e não poderia ser mais verdade. Para todos que já passaram por isso ou conhecem alguém que passou, será impossível não perceber. Há várias outras mensagens muito potentes para o Brasil de 2019, que os mais arrogantes e preconceituosos nunca pensariam encontrar num livro de fantasia. A mais poderosa delas, na minha opinião, é a relação entre o conhecimento e a liberdade. Gwen é a personificação disso: não há libertador maior que o saber.
E quando só há ignorância, há a tragédia. E isso também está no livro. No entanto, se é necessária coragem para descrever atos violentos, matar personagens e tripudiar em cima do sentimento dos leitores, é necessária ainda mais coragem ao entregar tudo isso e ainda oferecer esperança. E, no fim, A Deusa no Labirinto é uma história de muita esperança, mesmo diante das piores crueldades. É sobre não perder a humanidade diante da dor, sobre não deixar com que o pior do mundo destrua o melhor de nós.
A leitura é mais que recomendada. Não é necessário saber quase nada sobre Tormenta, e se você havia se afastado do universo por conta das Guerras Táuricas ou sempre viu Arton com desconfiança, dê uma chance.
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